terça-feira, 12 de junho de 2007

V - A RELIGIÃO DA VIDA E DA MORTE

As idas a Lamego eram sempre acontecimento de muitas aventuras, paragens técnicas e visitas diversas pelo caminho fora. A visita rápida a casa de vários amigos de longa data dos meus pais, era ponto de paragem obrigatória, nomeadamente por exemplo em Marco de Canaveses. E também em casa de muita gente, que para mim eram simplesmente novos conhecimentos, para eu ter a oportunidade de conhecer e conviver e paralelamente idas a locais miticos e especiais.
Num desses locais o meu pai, o meu futuro cunhado e o meu irmão, que por serem frequentadores assiduos, custumavam pedir invariavelmente um prego (sande de pão com um bife) e um fino (copo de cerveja tirado á pressão, também conhecido por imperial), fui um dia e sentei-me com eles ao balcão, qual homem grande, e o empregado, na sua gentil cortezia, após servir todo o pessoal, perguntou-me em voz alta e convicta: "Então! E aqui o cavalheiro o que vai querer? ", resposta pronta: "se todos querem um prego e um fino, eu cá para mim, e só para começar, quero um martelo e um prego!".
A minha intensão seria pedir uma sande de carne com um pirolito a acompanhar.
Foi a risota geral na cervejaria e a partir desse dia, todas as idas aquele local, eram acompanhadas por uma imensa festa e claro um "Prego e um Martelo", quero eu dizer uma sande de carne assada e um pirolito!
As visitas a Lamego culminavam sempre com a ida ao Bairro de Fafel, a casa dos pais do João, namorado da minha irmã e que veio a ser posteriormente seu marido. Ali, eu podia brincar á vontade e admirar a maravilhosa e enorme gata branca de casa, a "Branca", que veio a falecer com a incrivel idade de 19 anos, e com muitas dezenas de filhos dados á luz.
Por outro lado a atracção pelo rio que passava junto da casa, tomava conta de mim, e levava-me a passar horas e horas a vêr passar o seu curso, e a escutar o ruido inolvidável da água batendo contra as rochas, sempre na esperança de vêr o rio transbordar ou de vêr passar na sua corrente de agua rapida algo de fora do comum. Tal nunca aconteceu! E passados alguns anos voltei lá ao mesmo local onde passara horas a olhar e escutar o rio, e senti a mesma nostalgia e esperança de vêr algo diferente. Embora desta feita a unica alteração foi não ir vêr o rio totalmente sozinho, pois uma velha amiga, Gaby, acompanhou-me nessa perigrinação, e também o facto de não o encontrar tão limpido como antigamente, e em vez das suas cristalinas águas, encontrar bastante lixo num caudal de água bem suja. A paisagem envolvente continuava na mesma, bucolica, e serviu de local para eu conhecer melhor a maneira de ser e estar da Gaby. A mesma Gaby que anos antes eu não conhecia se não como irmã do meu bom amigo Tó-Jó, e com a qual não convivia porque a achava demaasiado criança, para mim, um jovem com pouco mais 4 ou 5 anos do que ela. E agora essa "Gaby" deixava-me de alguma forma pensativo sobre os meus reais sentimentos em relação a ela, e os sentimentos dela para comigo.
O meu cuunhado era musico, tocava bateria no famoso conjunto musical da epoca "os 5 Latinos", eu nunca tive intensão de me dedicar à musica, mas naquela epoca adorava fazer barulho com as baquetas nos tambores daquele instrumento, que me parecia ao mesmo tempo deslumbrante e demasiado dificil de tocar.
Outra das minhas aventuras naquela casa era vestir a farda militar do meu cunhado, e gozar um pouco com os militares, pois desde sempre me senti anti-militarista.
Até hoje recordo que ir a Lamego era sinonimo de encontrar um dos frutos de que ainda hoje mais gosto, castanhas, e ainda recordo também o maior magusto a que alguma vez tive oportunidade de assistir e participar, e que para além de castanhas assadas, se pode comer nesse dia sardinhas, frangos, e carne assada variada. Foi uma festa e tanto, num local paradisiaco em Resende, localidade que fica situada a uns quantos km's de Lamego, e onde a casa do seu cunhado António Amadeu, era visita certa e obrigatória.
O meu cunhado tem uma doença desportiva, da qual eu também padeço, é adepto do Sporting Clube de portugal, mas pior do que isso, é o facto de ele ser verdadeiramente adepto ferrenho do Sporting Clube de Lamego, filial do Sporting C. P., e não dispensar uma ida até à "Serra das Meadas" para assistir aos jogos de futebol do clube da sua terra natal, e eu não raras vezes o acompanhei para assistir a jogos no complexo desportivo, que nessa altura tinha tanto de bonito como de rudimentar, mas que mais tarde se tornou num verdadeiro centro de estagio, onde as próprias Selecções Nacionais, já por mais de uma vez estagiaram.
Cada vez que o meu cunhado se deslocava a Cinfães, a casa dos meus pais para namoriscar a minha irmã, tinha-mos que o levar no regresso à Estação ferroviária de Mosteiro, esta era uma oportunidade sempre bem aproveitada para se passear um pouco.
Constituia factor de muita imaginação minha o tunel existente junto da estaçção e do qual eu via sair apitando comboios, e tantas vezes imaginava a possibilidade de esse tunel conduzir para outros locais que não a simples linha ferroviária com destino à Vila da Regua. Era a minha imaginação sempre a funcionar, e o ruido do apito da locomotica que se aproximava, ainda aumentava mais a minha espectativa sobre essas aventuras sem fim, aliadas á passagem de nivel que era uma armdilha contra o tempo, pois quem não passasse para o outro lado antes de ser encerrada, perdia o comboio.

Com a chegada do outono, e o inicio do periodo escolar, lá vinha a aventura da apanha das castanhas, e o martirio de chegar a casa todo sujo, e com o velhote Antunes à minha espera!
Os castanheiros eram atacados de uma forma verdadeiramente assassina. Um de nós subia ao alto do castanheiro, os outros ficavam por debaixo e iam apanhando os ouriços com as castanhas ainda no seu interior, e colocando bem rapido para dentro de sacos e muitas vezes dos casacos despidos e a improvisar sacos, enquanto dois ou três vigiavam as cercanias para vêr se não vinha o dono dos castanheiros e nos apanhava naquele furto descarado.
Entretando o tempo dava para uma batalha de tiros de castanhas, com a constituição de duas equipas, e depois eram tiros e mais tiros de castanhas com os ouriços ainda a proteger a castanha e tudo, era um momento de incrivel liberdade, e ao mesmo tempo a inocente destruição de fruta que muita falta fazia para muita gente.
Os ataques eram sempre realizados depois das aulas, e no regresso a casa, e quando dava para o torto, era fugir a sete pés, com as castanhas que se conseguiam salvar nas mãos, casacos, sacos, etc, e tudo o resto ficava para trás, porque o dono dos castanheiros não perdoava.
Tantas vezes nos escondemos na quintinha do Dr. Ramos, e vimos passar um dos donos dos castanheiros, clamando alto e bom som que nos dava uma trepa daquelas para não mais esquecer, se nos conseguisse colocar as mãos em cima, só que nós fugiamos que nem ratos, e era impossivel apanhar aquele grupo de "pilha castanhas".
Por sorte nunca aconteceu nada ao grupo, mas cá este vosso amigo, a unica tareia que quase esteve para levar do pai, foi por causa desses ataques aos castanheiros.
Como eu era o mais conhecido do grupo, e o meu pai dirigia a Sub-Estação Electrica, volta não volta havia queixas a meu respeito, e da minha colaboração efectiva com o grupo de "pilha-castanhas". E depois de muitos avisos por parte do meu pai, um dia cheguei a casa, e ele lá estava à minha espera com o cinto das calças em riste. A minha sorte foi que ele se encontrava debilitado, em fase pré-operatoria ás varises, e não podia correr muito, e o salão da casa mais parecia uma quadra de futebol de salão, de tão grande que era.
Correu atrás de mim e fizemos várias voltas em redor da enorme mesa, não sei quantas vezes corremos aquela verdadeira pista de atletismo. Ainda tentou empurrar a mesa contra uma parede para vêr se me encurralava de forma a eu não ter escapatória, mas felizmente a minha protectora irmã, lá me salvou mesmo em cima do gong final do acontecimento.
Teria nesse dia, sido cá uma tareia de se tirar o chapeu! Tal a ferocidade com que se encontrava conta mim, face ás imensas queixas que o meu curriculum já continha.
E logo eu que até hoje, adoro a fruta, mas não como castanhas cruas, só participando nos "assaltos" por pura amizade e companheirismo, teria arcado com todas as culpas, e respectivas consequências, enquanto os outros é que acabaram por comer todas as castanhas.

As aventuras nos tanques das lampreias e das enguias, também, normalmente não corriam muito de feição, tal a quantidade e qualidade das asneiradas que eram praticadas.
Para nós, aquelas "cobras" eram interessantes pois sabiamos que não mordiam, e que o mais que nos poderia acontecer seria um chupão de uma lampreia num braço ou numa perna.
Dai que volta e meia, se saltava o muro, e lá iam umas quantas lampreias e enguias para fora dos tanques para as vêr andar na áreia ás voltas.
Quando o dono aparecia! Nova correria, e nova emoção da fuga ao inimigo.
Que tempos!
Sempre a brincar com base no perigo de não se conseguir fugir a tempo e poder vir a ser apanhado.
Que emoção!
Nunca mais tive uma emoção perante um perigo eminente como nesses tempos. Aquilo é que significava para nós, correr verdadeiramente um risco de "vida" a valer!

Nunca ninguem pensava na possibilidade de morrer, ou em ter algum problema grave de saúde, tudo valia o risco, a maneira de viver bem ao nosso gosto e sobretudo viver a vida depressa, De tal forma existia essa descontracção perante a vida e os seus riscos, que estive ás portas da morte, por causa do meu amor aos felinos.
Um dia quando regressava da escola, de mochila ás costas, qual astronauta, junto ao limite inferior do Parque Serpa Pinto, ouvi o lamento profundo de um gato, mesmo por detrás do talho, junto à escadaria que existe no limite do parque.
Eu e o meu inseparável amigo, Tó-Bé, lá fomos vêr o que se passava, e eis que deparámos com um dos "palermas" da calçada, a tentar afogar um gato amarelado, listado e muito bonito, num tanque cheio de ramos de limos.
Não perdemos tempo e lançamos um ataque ao "criminoso", e com uma zaragata pelo meio, e eu a fazer equilibrismo no muro de pedra do tanque, tentando acalmar o felino, e salvá-lo com um ramo no meio do tanque. Mas como as tentativas foram tantas, acabei por mergulhar no tanque, conseguindo no entanto salvar o gato, mas ia morrendo afogado, para além de ter ficado ensopado como um pinto.
Fui salvo pelos apelos do meu bom amigo Tó-Bé, que alertou o assougeiro do talho vizinho, que lá veio acudir, e fazer de nadador salvador, tirando-me de dentro do tanque de limos.
Decidi, tirar a mochila das costas e colocar a secar todo o material escolar, que estava tão ensopado e cheio de verdete dos limos como eu, e coloquei-me ao sol a secar, na esperança de que à chegada a casa nada de estranho se pudesse notar.
Tanto sol apanhei que a roupa mais ou menos secou no meu corpo, o pior era o verdete tanto na roupa como nos livros, e o cheiro que vinha de tudo quanto tinha ficado molhado, e as botas encharcadas, bem como alguma roupa que, apesar da larga exposição solar acabaram por não secar.
Lá fui para casa, tarde e más horas, com arrepios de frio e de medo da esperada recepção, quando alguém me avista-se naquele estado deplorável.
A minha boa irmã lá tentou saber o que tinha acontecido, e mal ou bem esconder a situação, mas tal era impossivel face ás claras evidencias da natação matinal.
No dia seguinte, pela manhã, estava sem livros para levar para a escola e com 42º de febre.
O resultado final, daquela aventura, foram duas broncopneumonias seguidas, cerca de dois meses em casa, um ano escolar perdido, e o Dr. Ramos a visitar a minha casa duas ou três vezes por dia, e durante os primeiros tempos a dizer que o prognóstico quanto á minha recuperação era reservado, chegando a aventar a hipotese de uma ida para fazer tratamento expecifico, com obrigatoriedade de um internamento num hospital do Porto.
Quando hoje escuto alguma pessoa referir que não é possivel alguém reprovar no primeiro ano da escola primária, eu sorriu, e tento apostar que tal é possivel, pois eu sou um exemplo dessa possibilidade.
Lá me safei de mais essa aventura da minha infância, e até hoje se existe animal pelo qual nutro grande amizade, é pelo gato.
O felino é um animal inteligente, astuto, asseado, e ao contrário do que muito boa gente diz, muito amigo do seu dono, só que temos que entender que só ele sabe o momernto próprio de dar e pedir atenção e carinho.

Os meus amigos também não mediam o perigo de algumas brincadeiras, e por vezes algumas acabavam mal.
O filho do dono da Cidla, era doido por bicicletas e velocidade. Chegava a disputar apostas para corridas à volta do Parque, e foi numa dessas competições, depois de umas quantas voltas diabolicas, que ele forçou demais o andamento e foi embater directo numa enorme árvore.
Para além dos prejuizos na bicicleta, começou desde logo a queixar-se de que não conseguia vêr nada.
Lá tentámos endireitar o que restou do velocipede, na esperança da sua recuperação, è que para além de algumas escoriações ligeiras num braço e numa perna, e umas calças rasgadas, no seu rosto nada, aparentemente, se notava de estranho.
Como não melhorava, e a corrida tinha terminado mesmo por ali, lá fui eu e mais outro dos nossos amigos comuns, leva-lo a casa. Ele continuava a afirmar que nada via, e que tinha umas dores tremendas na cabeça.
Pensamos sempre que seria devido à forte pancada na árvore, e que passaria dentro de algumas horas. Mas mal chegámos à casa dele a mãe e a irmã entraram num imenso pranto, e seguiram para a loja do pai, situada mesmo ao lado da residencia, e tudo foi de imediato encerrado, tendo partido todos para o Porto no carro familiar.
Naquela altura viajar de Cinfães para o Porto era uma aventura verdadeiramente épica, tal a qualidade das vias de comunicação, aliadas também à perfomance das viaturas.
Durante três dias não soubemos nada de nada do que se estava a passar.
Quando regressaram, ele vinha com as duas vistas tapadas, e a familia não dizia nada à rapaziada. Só vim a saber o que aconteceu uns dias depois, pela voz da minha mãe; "ele tinha ficado cego das duas vistas", e para nós seus leais amigos, era o primeiro grande aviso, sobre um facto triste da vida que presenciaramos, a quer dizer-nos que afinal, nada na vida era assim tão facil, nem sem problemas, e que muitas vezes as nossa brincadeiras aparentemente inocentes, poderiam trazer sérios problemas para nós ou para os outros.

Mas os perigos e as consequências dos actos da minha geração de infância, nunca eram medidos, assim no extremo do conjunto de edificios, junto da escadaria fronteira à Igreja Matriz, existia uma arrecadação tipo saguão, para recolha de lixos da Casa Camelo. Era uma tentação saltar a vedação para apanhar os plásticos que embrulhavam os chapeus de chuva, e caixas de camisas, e a tentação era tanta que ninguem respeitava a propriedade alheia, e muito menos o perigo de uma vedação com a parte superior forrada a espigões ponteagudos.
O pessoal arranjva umas caixas grossas de cartão, ou uns bocados de madeira, para se defender dos espigões, e lá se punham uns em cima dos outros, fazendo autenticos malabarismos, para tentar alcançar o cimo da vedação, e zás, passava alguém para o outro lado, para fazer a tarefa de atirar para fora os sacos plásticos de protecção dos guarda-chuvas e as caixas das camisas entre outras coisas.
Eram elementos fundamentais para as nossa brincadeiras, os sacos cheios de água, areia ou terra, serviam como arma de arremesso nas nossas batalhas, e as caixas plastificadas, e cheias de cores, faziam as delicias das nossas brincadeiras para guardar carrinhos e outros objectos das nossas prementes necessidades diárias da epoca.
Nunca aconteceu nenhum acidente, nos assaltos ao saguão do "Camelo", tirando umas calças rasgadas, mas alguém, algum dia, bem se poderia ter magoado muito seriamente.
Anos mais tarde foi publico o conhecimento do falecimento do filho de uma grande actriz internacional, Rommi Schenaider, por uma brincadeira similar.

A escola primária constituia um momento de confraternização e convivio entre amigos, para além claro da natural aprendizagem. Essa época não tinha nada que vêr com o ensino primário que é ministrado nos dias de hoje, pois o professor era visto pelos alunos com respeito e reverencial distância.
Tive muita sorte de na minha primeira classe encontrar um professor extraordinário, a que carinhosamente baptizamos de "ovo estrelado", e tudo porque possuia um automovel modelo "Anglia Fascinante" de cor amarela, de gema de ovo.
Sempre que de manhã chegava à escola, a malta gritava "Já ai está o ovo estrelado!"
Era um professor optimo em termos didacticos, respeitador, dialogante e amigo de todos os alunos sem excepção.
Eu comecei desde cedo a escutar em casa, e um pouco, por todo o lado, a história de que o irmão, o Padre Adão, andava metido com a cunhada, esposa do meu professor.
Realmente os movimentos do Padre eram muito estranhos. Ia e vinha constantemenmte lá de casa do irmão, a todas as horas, e em especial, quando o professor estava ocupado ministrando as suas aulas.
Diziam também à boca pequena, um pouco por todo o lado, que um dos filhos do professor, na realidade não seria legitimamente seu, mas do Padre seu irmão, mas como nessa época se dizia tanta coisa, num meio tão pequeno e mesquinho, tudo poderia ser verdade, como tudo poderia ser mentira.
A nossa classe do primário tinha aulas pela manhã, e um belo dia de chuva miudinha, no mês de Outubro, ou Novembro, já não recordo muito bem, o professor chegou mais cedo à sala de aula, do que o que lhe era habitual. Quando chegámos à escola já lá estava estacionado o "Anglia Fascinante, amarelo". Entrámos para a sala de aulas e passado cerca de meia hora, pediu-nos licença, saiu, voltou com o filho mais velho, solicitou-nos a todos que nos comportasse-mos bem e que não houvesse barulho, pois tinha necessidade de sair uns minutos, e o filho, que já andava na 4ª classe tomaria conta de nós.
Claro que passadas umas dezenas de minutos, estava instalada a revolução com um tumulto tremendo, com barulho e confusão. Uma funcionária apareceu para saber o que se estava a passar, e perante o pronto esclarecimento do filho do professor, e do resto da classe, a funcionária decidiu ir averiguar pessoalmente o que realmente se passava com o professor, para justificar uma tão grande demora.
Quando voltou, vinha branca como a cal das paredes, pediu a todos silencio, chamou o filho, e sairam. Nós saimos logo em seguida, atrás deles, e quando chegámos ao alpendre da escola, o espectaculo era prenuncio de tudo quanto se viria a confirmar posteriormente.
O chão do alpendre era de cimento recortado aos quadrados, e formava entre estes espaços, saliências inferiores em linhas rectas bem desenhadas à esquadria. O chão junto dos wc's estava com essas saliências pejadas de sangue, que saia por debaixo da porta de uma das casas de banho, e se ia estendendo no chão em vários sentidos, conforme as linhas divisórias existentes no chão, desenhando uma imagem de quadrados recortados a vermelho vivo.
O filho mais novo do professor, e nosso colega de classe, foi colocado ás costas de outro colega e observou o que se passava no interior do wc, tendo desde logo relatado que o pai estava caido com a cabeça dentro do lavatório. Um outro colega a muito custo lá conseguiu abrir a pequena janela e saltar para o interior, abrindo em seguida a porta do wc que se encontrava trancada por dentro.
A imagem era surrealista, dantesca!
O nosso professor estava pendurado na torneira do lavatório, preso pelo pescoço pelo cinto da sua bata, o sangue tinha transformado a parte inferior da bata branca numa nova bata agora de cor "vermelho vivo", e os oculos de finos aros estavam com uma lente partida e caidos dentro do lavatório.
O professor tinha-se enforcado, fazendo do cinto da bata, um cordão e, em simultâneo, com uma lamina de barba tinha cortado os dois pulsos, e estava a esvair-se em sangue, praticamente desde que nos deixou na sala de aulas à sua espera, pois só assim se podia justificar parecer já não ter quase uma pinga de sangue no seu corpo.
Recordo até hoje de forma inequivoca, a sua imagem, a côr da sua pele que era bem branca e naquela altura estava com uma côr amarelo basso, os oculos com uma lente partida e caidos dentro do lavatório, tudo isso junto transformavam aquela cena num autentico filme de terror.
Foi finalmente retirado e colocado sentado num enorme cadeirão de madeira, no meio do alpendre. Constituindo uma imagem incrivel para um grupo de crianças como o nosso, com a nossa idade, e com a vivencia normal do inicio de formação.
Uns choravam, outros gritavam, os filhos chamavam pelo pai a chorar e gritar ao mesmo tempo, ninguém se entendia tal a confusão. Eu observava tudo, cuidadosamente e com muita curiosidade, própria da minha idade e da minha maneira de estar na vida e de encarar novos acontecimentos para mim tottalmente novidades, como o era aquele.
E o alpendre da nossa escola transformou-se numa autentica sala de teatro, demasiado pequena para acolher tantos actores, e em que todos eramos actores participantes da peça, e em que o actor principal, em redor do qual todas as cenas se passavam, era o professor, mas mantinha-se imovel, aparentemente alheio a todo o desenvolver da acção, como se nada fosse com ele, e se tivesse transformado num espectador, o unico com atenção no desenvolvimento da peça...
A autoridade foi chamada, bem como o Dr. Ramos, e o professor entretanto ali ficou em exposição, durante largos minutos, perante o olhar de todos e sem um simples lençol lhe colocaram por cima. Só quando chegaram as autoridades, é que lhe colocaram um lençol em cima do corpo já frio, e pediram ás funcionárias e restantes professores para libertarem imediatamente a escola de todos os alunos. Selaram os portões, e nós, que gostávamos do professor, ficámos ali em frente da escola, debaixo daquela chuvinha miudinha, à espera do Dr. Ramos para saber se existia ainda a possibilidade de algum milagre, e ingenuamente se poderia ainda recuperar o professor com uma entrada de sangue no seu corpo, ou outra solução, que as nossas cabecinhas, imaginavam ser ainda possivel.
Quando saiu, o Dr. Ramos vinha branco como a cor da sua bata, e ao ser confrontado por nós com perguntas e mais perguntas sobre o professor, apenas respondeu, quase a chorar: "Partiu um homem bom, muito bom mesmo! Vão para casa, meus filhos, por favor, vão! amanhã se calhar vão ter de novo aulas, por hoje acabou! Vão, pois a vida continua, para os que cá ficam!"
Fomos para casa, seguindo o conselho do Dr. Ramos. Todos fomos em silencio, imaginando isto e aquilo, e alguns de nós, talvês a maioria sem saber na realidade o que tinha acontecido para levar um homem a cometer um acto de tamanha importancia para a sua vida.
Eu percebi logo o que tinha acontecido, e lamentei a minha profecia da missa de domingo de algum tempo atrás, pois tinha de alguma forma como que profetizado algo que veio a acontecer naquela manhã.
Percebi também que tinha acabado ali, naquela manhã, o meu relacionamento pessoal com aquele homem ilustre, que sabia ensinar, ou melhor dizendo tinha uma paciência e sabedoria extraordinárias para saber lidar com crianças, e ensinar os primeiros numeros e letras.
Relembro, as suas feições, a sua simpatia, o seu geito especial de ensinar, a sua delicadeza ao pedir a cada um de nós, com um "por favor", informações sobre as nossas dificuldades.
Era um homem bom sim!
Um homem muito bom!
O Dr. Ramos, tinha razão, e naquela manhã Cinfães do Douro ficou mais pobre!
Lamentávelmente sei hoje que os cemitérios estão cheios de herois e de homens bons.
Obviamente nos cemitérios estão homens, uns mais herois do que outros, e alguns homens que de bons apenas tiveram o acto de morrerem para nada mais de negativo puderem praticar contra outros homens,
Também naquela manhã, enquanto caminhava para casa, debaixo daquela chuvinha a que habitualmente aplidamos de; "chuva molha tolos", eu entendi que a morte não chega só para os maus, chega para todos, sem escolher entre bons e maus.
E que quem anda á chuva molha-se!
A morte existe mesmo! É real e temos que viver com a sua constante presença no meio das nossas vidas, tal como temos de viver com a normal espectativa de um anunciado nascimento, também a morte é algo de natural, a que não podemos fugir. Podemos sim antecipar a morte, como foi o caso do nosso ilustre professor.
Assim sendo, nós depois de nascer-mos ficamos com um poder extraordinário sobre nós próprios, de poder a qualquer instante, e mesmo contra a doutrina de certas religiões, poder colocar um ponto final na nossa vida, caso o entendamos dessa forma, e tenhamos coragem para isso. Pois quem se suicida não é um cobarde como muito assim pensam, quem se suicida tem que ter muita coragem para praticar um acto, que é nada mais, nada menos que o ultimo da sua vida.
Talvez por isso, sou um defensor em casos muito especiais da eutanasia, e por incrivel que pareça já pessoalmente insisti para que fosse praticada com um familiar meu muito próximo, e que se encontrava á largos meses numa situação irreversivel de vida, a ocupar uma cama de hospital e a que nada já correspondia em termos de qualidade de vida para si e para os seus familiares.
Entendi também que os Padres são homens como os outros, iguais em tudo.
E que tal como alguns homens, lamentávelmente não respeitam, nem a própria familia, e batem no peito e pregam na sua maioria a alegada palavra de Deus.
Pregar a palavra de Deus para alguem que acredita na Igreja, é algo muito importante quando efectuado de um modo limpido e cristalino.
Mas quando se comprova o contrário, e que no seu dia a dia esses homens contrariam essas mesmas palavras, e de uma forma tão grosseira e natural como escovar os dentes ou "mijar" contra uma parede na via publica, e praticam acções que em nada tem que vêr com a doutrina da Igreja Catolica, então esses homens destroiem a palavra que algum dia algum Deus possa ter deixado para os homens na terra e transcrita na Biblia.
No Norte de Portugal, nos anos 60, a um Padre quase tudo era permitido, inclusive ter um relacionamento adultero de uma forma tão descarada com a própria cunhada, e manter-se de uma modo tão normal a dar aulas de catecismo, a transmitir os ensinamentos da Biblia aos paroquianos, a tentar fazer crer á sociedade ser um homem fora do comum dos mortais, a ministrar sacramentos, a afirmar-se como um dos dignos representantes de Deus na terra.
Esta foi a Igreja catolica que eu fui descobrir existir quando tinha 7 anos de idade, e esta é a Igreja Catolica que existe ainda hoje, quando eu já tenho quarenta e cinco, e estão passadas mais de 3 decadas sobre este acontecimento, de que muitos, por certo todos os que assistiram se recordaram, e nunca mais se esqueceram nem vão apagar da memoria das suas vidas.
O Padre Adão continuou a ser o Padre de Cinfães do Douro, pelo menos enquanto eu lá vivi!
A vida continuou. As alcoviteiras continuaram a falar baixinho e á boca pequena nas aventuras do Sr. Padre Adão, e tal como em tantas outras situações vividas com a Igreja Catolica, aquele assunto virou um "tabu" e não se podia discutir em praça publica...

A Vida e a morte existem, e estão em nossa casa, em cada esquina do trém das nossa vidas, aguardando só o momento certo de se fazer parar o trém numa qualquer estação para fazer entrar mais alguem, uma nova vida, um novo passageiro, ou para nos fazer descer, para nunca mais voltarmos a viajar nele.

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