terça-feira, 12 de junho de 2007

IV - AMIZADES DE ESTIMAÇÃO QUE SÃO UMA LIÇÃO

A imagem do meu fiel amigo Guedieiros, ficará para sempre na minha memoria. Era um cão pastor de grande porte de pelo cor creme escuro, super inteligente, que me ia levar e buscar, à porta da escola, e que acompanhava as minhas aventuras todas, com uma reverência impossivel de igual, e para esse não existiam horas nem dias marcados, era sempre que cá o amigo saia.
Em casa, quando não havia brincadeira para animar, ficava deitado junto da porta da cozinha, esperando ou por mim ou por minha mãe, para esta lhe servir a tão festejada refeição, ou por uma festa do pessoal da casa.
A minha irmã Alcina,que sempre gostou muito de gatos, estimava também bastante este animal, o meu primeiro fiel amigo de estimação, que me viu crescer, pois foi-me dado ainda bebé, quando eu tinha dois anos de idade.
Um dia ele não voltou para casa, nem tão pouco me voltou a ir buscar à escola. O meu pai decidiu manda-lo abater!
Ainda hoje a versão que corre é de que teria mordido a uma "matrafona" com quem o pai andava metido na altura. Eu na verdade fiquei muito triste e só a presença do outro animal da casa, o gato "Cossaco" conseguiu de alguma forma atenuar esta perda, que foi a primeira perda de um fiel amigo, depois dele outras alegrias e tristezas com animais se seguiram, incluindo o facto que levou a que hoje eu me considere racista, e recentemente a perda de um outro animal me fez tanata lastima, um outro fiel amigo de 12 anos "Lord", morreu nos meus braços, e como me doeu, como sofri nesse dia, como revivi nessa hora tudo o que já tinha sofrido nos meus primeiros anos de vida com a perda de uma amigo especial. Nos ultimos momentos que passamos juntos revi toda a sua vidam, conjuntamente com a minha vida, tantos momentos bons e engraçados, uma vida vivida ao lado de alguém que é fiel até´`a morte.
O gato "Cossaco" foi lá para casa tal como o "Guedieiros" bebé, uma cria que foi criada a biberom, e era um animal unico, na realidade arraçado de ginete, tinha um pelo cinzento lindo, que quando se lhe passava a mão pelo lombo mudava de cor, um delino de se lhe tirar o chapeu, tinha tanto de meigo como de autentica fera. Acompanhou a minha irmã até quando esta casou. Soube que tinha sido necessário manda-lo abater a tiro pois virou o chamado "pilha-galinhas" não havia galinheiro que escapa-se à sua furia devastadora, só por puro prazer de matar, pois comida não lhe faltava em casa

O meu amor pelos animais não tinha fim, o primeiro animal adoptado por mim foi uma simpatica cobra que todos os dias ia beber água, na torneira da mangueira de lavar o carro, que se encontra num tunel existente debaixo da casa, e que dava acesso directo da garagem a um pequeno jardim interior, que tinha no seu centro um poço, onde se olhava, olhava e não se via o fundo. Sempre achei, com a minha imaginação propria da idade, que aquele poço levava ao centro do mundo, pois como não tinha fundo...
Sonhei inumeras vezes em me atirar a esse poço e ir caindo, caindo sem parar, a caminho do centro da terra!
Ao que pode chegar a imaginação de uma criança!
Mas uma coisa é certa, eu olhava e não lhe via o fundo, se bem que lá muito em baixo existisse água, mas muito lá no fundo mesmo.
Nunca soube se esse animal, adoptado por mim, tinha vindo desse poço sem fundo, pois tal como apareceu, voltou a desaparecer!
Durante muitos dias, eu no meu instinto paternal de salvaguarda animal, roubava leite do frigorifico familiar e dava-lhe de beber, na realidade o reptil bebia o leitinho todo, e deixava eu fazer-lhe festas. Eu nem sabia com que animal estava a lidar, até que um dia, a minha irmã desconfiada de tanto leite que eu levava para o andar inferior da casa, me seguiu, e ia morrendo quando deparou com o animal descansadamente a beber, e eu junto dele com a maior das calmas.
Mandaram imediatamente acimentar todo o local e tapar o poço, a cobra não foi morta, mas também nunca mais veio beber a água ou o leite, e eu religiosamente, durante largos dias lá ia procurá-la e inclusivamente chamar pelo bichinho.
Só anos mais tarde descobri que, embora tenha pavor dessa bicharada, tinha acabado por tratar de uma cobra, alimentando-a a leite e ainda por cima fazendo-lhe festas no lombo.

As minhas aventuras no quintal da casa também passavam pela veia agricola, mas sem grandes resultados produtivos. Vi um dia na televisão, no programa do Engº Sousa Veloso, "Tv Rural", uma reportagem sobre a aplicação de estufas plasticas na produção de couves e alfaces, e o aumento exponencial da produtividade, e desde logo decidi:
"Eu também vou contribuir cá para casa! Vou plantar couves e alfaces!"
Se melhor o pensei, ainda melhor o executei; e assim num dia de Feira Local, decidi ir investir, arrajei maneira de surripiar umas quantas sacas de sementes de couves e de alfaces, e no dia seguinte meti mãos à obra, arranjei plásticos, uns bocados de velhos guarda-chuvas e preparei umas quantas mini-estufas no quintal, efectuando uma sementeira de alfaces e couves, com uma cuidada rega diária incluida.
Ainda hoje espero que as couves e alfaces surjam. Nunca nasceram, não sei se pela qualidade das sementes ser boa??? ou se porque em estufa, no Norte de Portugal, essas culturas não se dão.
Fiquei com uma frustração tremenda, que só me veio a passar anos mais tarde, em Africa, em Moçambique no Songo - Cahora Bassa, onde construi umas estufas bem maiores, e consegui fazer vingar todo o tipo de culturas horticulas desde couves a cenouras, com bastante sucesso em termos de quantidade e qualidade.
Posso não ter saido profissionalmente Engenheiro Agronomo. Posso nunca ter tido uma quinta, granja ou fazenda, mas estou certo de que sei plantar couves, alfaces e outras especies horticulas, por isso o defeito não devia ter sido meu ao efectuar a plantação em Cinfães.
A minha veia para a agricultura, para ter um bocado de terra minha e cultivar alguma coisa, vem de longa data.
A familia Massapina, tinha o meu avô e o meu tio como Engenheiros Agronomos, e era a minha grande ambição profissional de juventude, vir a seguir os seus passos em termos de profissão.
Não se concretizou esse sonho, nem tão pouco até hoje, o sonho de um dia ter uma quinta ou uma granja minha, para poder ter algumas culturas e desfrutar da companhia de alguns animais, no fundo coisas simples como um cavalo, uma vaca, um burro, umas quantas galinhas e patos, para animar alguns dias de descontracção.

Com o passar do tempo, a vida vai trazendo surpresas, e um dia descobri que não via bem. Havia momentos em que conseguia vêr duas imagens sobrepostas. Achei aquilo muito engraçdo no inicio, mas depois foi o fim. Não conseguia vêr bem televisão e muitas vezes ficava coma vista parada num determinado objectivo, mesmo querendo olhar outro.
Lá carregaram comigo para o Porto para um Oftalmologista, e o resultado final foi verificarem que tinha estrabismo e parilisia.
A unica forma de resolver o problema era operar, ou com o passar do tempo acabava por ficar cego.
Entrei em parafuso, lá ia para o Porto dias sem fim para testes, e mais testes, exames e mais exames. Meter leões em jaulas imaginárias, caçar focas e ursos, eu sei lá já as imagens que apareciam naquelas máquinas infernais. Tapavam uma vista e ia para a maquina, destapava e tapava a outra vista e ia para a maquina novamente, dias sem fim de viagens, Cinfães - Porto, Porto - Cinfães, uma fortuna só em viagens, e no fim lá fui operado.
No dia em que entrei para a clinica no Largo da Boavista no Porto, para ser operado, à entrada da clinica estava um cego a pedir esmola, e este episodio ficou gravado para todo o sempre na minha memoria; olhei para ele e disse á minha mãe: "Mãe e se eu ficar como ele, o que vou fazer da minha vida? Também vou andar na rua a pedir esmolas?" ela respondeu-me prontamente: "Não filho! Vais ficar bom, e mesmo que por um azar do destino isso não aconteça, felizmente nunca serás obrigado a pedir esmolas para viver, pois ainda temos alguma coisa de nosso para te proporcionar um futuro com condições".
Pedi-lhe encarecidamente que lhe desse uma boa esmola. Abriu a carteira e deu-me 20 escudos. Era muito dinheiro para uma esmola naquela epoca, acho que o Pobre mendigo nunca conseguiria 20 escudos num bom dia de pedinchisse. Dei-lhe o dinheiro na mão, desejando-lhe felicidade, o Pobre apalpou a nota, custando a acreditar que não teria de dar troco, e sorriu com a maior das felicidades do Mundo. E esse sorriso foi para mim um motivo de grande felicidade e de tranquilidade ao entrar na clinica. Ainda hoje esse sorriso no rosto daquele desafurtunado da vida, alguem que talvez por não ter posses, nunca poderia ser operado, e dessa forma, devido á sua condição economica, nunca poderia vêr o sol, as cores das plantas e do mar, e as mulheres bonitas que povoam este mundo.

Fui operado com exito. O pior foi a fase pós-operatória, pois tinha que andar com os olhos vendados, e eu queria fazer tudo como dantes; jogar, brincar, correr, saltar e imaginava os objectos num determinado local, e afinal eles estavam na realidad em outro competamente diferente.
A minha irmã com paciencia quase de santa, lá me acompanhava, mas muitas vezes desesperei e cheguei mesmo a ser agressivo com ela.
Imaginava o Guarda-fatos num determinado local do quarto, e dirigia-me para lá, em vez desse movel eu encontrava por exemplo a parede ou a porta. Voltava a imaginar o quarto e voltava a errar, era de entrar em desespero total.
Entretanto aprendi a viver com essa total falta de imagem, acho inclusive que os cegos que já algum dia puderam vêr, passam pela mesma situação.
E então para testar, comecei a exigir jogar por exemplo as damas, sabendo que as pedras andam no tabuleiro de uma forma obliqua, eu prepositadamente perguntava se tinha jogado bem, quando empurrava as peças para a frente em linha recta.
Quando me respondiam que sim, eu sabia que estavam a mentir e lá ia o tabuleiro e as peças pelos ares, com uma furia total!
Chegou então o dia de tirar as ligaduras, e enfrentar a realidade da luz, e que sensação maravilhosa, voltar a poder vêr pelos meus próprio olhos, que bem precioso é a visão.
No inicio tinha todos os espelhos da casa tapados para não poder vêr que tinha os olhos super vermelhos, mas com a minha habitual irreverência, descobri um espelho que podia destapar e onde podia olhar-me, fiquei impressionado com a cor avermelhada dos olhos, até fazia doer a vista, olhar para aquele espectaculo, mas depois achei normal, com uma operação tão melindrosa, como seria possivel não ter ficado assim e ainda por cima me garantiram que seria só durante um curto espaço de tempo.
E voltei a vêr! E voltei a ter os meus olhos verdes, unicos, que muita gente diz serem bonitos, mas que eu acho normais. deve ser porque são simplesmente os meus olhos, que eu não os considero bonitos, mas sim normais, claro!

Durante o meu internamento, as minhas sobrinhas, filhas do meu irmão João, todos os dias fizeram questão de me visitar.
O João era filho do meu pai com a sua primeira esposa, portanto um irmão de outra familia, mas que lá por isso não deixava de ser meu irmão, e pelo qual eu nutria uma amizade muito especial.
Achei aquelas visitas diárias, uma atitude de uma beleza estraordinária, e quando passados 3 meses fui de novo operado, desta feita ás amigdalas, voltaram a estar ao meu lado novamente todos os dias.
Era uma sensação de conforto e amizade impossivel de quantificar ou descrever em toda a sua plenitude, ainda por cima raramente iam a minha casa, e eu nunca soube porque?
A minha relação com o meu meio irmão João, foi sempre muito especial, eu era muito bebé e ele vinha visitar-me, trazer um doce, um simples brinquedo, que me caia tão bem. Quando ele aparecia eu sentia uma alegria especial, uma paz estraordinária.
A sua presença é uma das poucas memorias que o meu cerebro consegue reter e transmitir-me com nitidez relativamente aos primeiros anos da minha vida.
Nunca entendi porque me vinha visitar estrategicamente somente quando o meu pai não estava em casa. Sabia que não se davam, mas a razão dessa aversão era sempre explicada com a doença dele, e o facto de não se querer tratar direito.
O seu verdadeiro problema de saúde tinha que vêr com a vida de boemia que levava. Sendo jogador profissional de futebol, pelo Leça, Clube de Leça da Palmeira, Matosinhos, que na epoca estava a militar em escalões superiores do futebol nacional, ele passava noites e noites na borga, com amigos bebendo e com mulheres.
Segundo diziam, tinha muitas mulheres um pouco por todo o lado onde parava.
Esta vida de desgaste rápido conduziu a um sério problema pulmonar, que ele tratava à sua maneira, sendo que o mesmo se foi agravando, obrigando inclusivamente a um internamento num sanatório. E nem mesmo ali ele parava de conquistar, saltando o muro para a área feminina do sanatório, passava a maioria das noites com companhia feminina, ou optava por fugir e ir dar uma volta em conhecidos bares e locais de culto da noite nortenha, apanhando frio, chuva e descurando de alguma forma os tratamentos que deveria fazer.
Entretanto soube que morreu!
A noticia chegou fria e de forma aleatoria como a tentar evitar que eu tivesse conhecimento, só que eu escutava tudo com muita atenção, e tomei boa nota de que nunca mais me viria vêr pessoalmente, pois tinha partido para sempre.
Faleceu durante mais uma das suas noitadas de borga. Foi encontrado de madrugada, caido na via publica no Porto, perdendo sangue, e chegou já cadáver ao hospital.
O meu pai lamentou o ocorrido, mas nunca cheguei a saber se realmente foi ao funeral, mas não deixou de referir alto e bom som que o seu fim foi aquele que ele tinha procurado durante toda a sua vida, e que de tanta gente que o acompanhava nas noitadas e borgas, acabou por morrer sozinho, quase como um cão abandonado.
Mas as minhas sobrinhas não irem lá a casa? Sendo netas legitimas do meu pai! Não, isso não conseguia entender a razão.
Por outro lado, a mulher do meu irmão, Helena, também não aparecer lá em casa, era motivo da minha apreenção.
Por isso foi motivo de grande felicidade poder conviver com as minhas sobrinhas, mesmo só aqueles minutos em que me visitaram, para mim foram muito importantes esses momentos de convivio.
Lembro em especial a minha sobrinha mais nova. Eu a achava muito bonita, e ainda por cima ela simpatizava comigo. No entanto mais uma questão se mostrava intrigante; a minha mãe procurava sempre que eu não ficasse sozinho com elas.
Depois de sair do periodo de internamento das duas operações, elas desapareceram de novo da minha vida, para só as encontrar muitos anos mais tarde, e por simples noticias indirectas.
É um buraco na minha vida, um buraco negro, ter duas sobrinhas com quem pouco ou nada convivi, e a esposa de meu irmão, minha cunhada, que tanto quanto sei, nunca mais refez a sua vida até ao dia de hoje, e com quem eu não mantenho relacionamento algum, devido a um afastamento inexplicável. É como matar metade da familia para não a vêr, algo muito estranho em termos comportamentais, e do qual eu não sou minimamente responsável directo.
Mas mais importante é só ter obtido uma ligaçao factual com esses meus familiares, num momento tão especial da minha vida, em que poderia ter ficado cego, o que poderia ter mudado radicalmente todo o meu rumo pessoal de futuro.
O destino dá-nos sinais, que normalmente não entendemos no momento da sua emissão, e somente anos mais tarde, fazendo a sumula do que aconteceu e do que veio a acontecer posteriormente, conseguimos entender a razão de ser de certas atitudes, acontecimentos ou maneiras de estar na vida.

As viagens ao Porto eram sempre pautadas por uma grande aventura! A passagem por um desfiladeiro que tinha uma estrada em construção na epoca. era um momento de raro terror, panico mesmo. Eu olhava pela janela do carro e só via o penhasco lá bem no fundo, e o carro a passar tão perto dos limites do caminho de terra e areão solto. Todo o mundo brincava comigo sobre o assunto, e eu só pedia que o carro andasse rápido para o outro lado, para a frente no caminho, para terminar esse martirio.
Soube que um dia, um carro caiu lá de cima pelo penhasco abaixo, e então o terror e panico passou mesmo a pavor aterrador.
Enquanto aquela obra não terminou foi para mim um suplicio passar ali. Este sim, constituiu o meu verdadeiro medo de infancia, nunca tive medo nem ao escuro a bruxas, ou papões, só a factos reais, e este era mais do que real para mim.
Quando por ali passava, fechava sempre os olhos uns bons minutos, aguardando memorizadamente que o carro termina-se a travessia do local de terror, para só depois abrir os olhos.

Mas a vida não tinha só factos tristes, também os havia bem reias e de grande alegria, como as compras na loja do Sr. Herminio, sempre acompanhadas com a oferta de um chocolate preto. Iguaria de que ainda hoje não dispenso um exemplar, quando lhe coloco a vista em cima.
Eu não dispensava uma ida ás compras, pois sabia que mais cedo ou mais tarde o simpatico Herminio ia colocar um precioso chocolate nas minhas mãos.
Ainda hoje adoro esse tipo de chocolate, que me dizem serve para cozinhar. Mas que fazer? Se eu sei que não sou guloso e só tenho esse prazer na vida das guloseimas.
As idas do meu pai ás patuscadas nas caves do Café Angola, eram uma boa oportunidade não só para gozar com o Comandante da guarda Nacional Republicana, como para brincar com os amigos do meu pai, para beber uns pirolitos, e aproveitar os berlindes, claro.
Dava-me ao trabalho de escolher as garrafas com os "Bilas" mais bonitos e que ainda não constavam da minha colecção. Muitas vezes trocava-se de berlindes como se trocava de cromos de colecção de jogadores de futebol, e a simples passagem pela cave do Café Angola, era sempre motivo para trazer uma boa dezena de berlindes, pois todo o pessoal bebia uma garrafa de pirolito só para me agradar, caso contrário, era chateado durante largo tempo da minha presença.
Invariavelmente, a minha ida para as bandas do Café Angola, significava igualmente uma ida ao Barbeiro que ficava próximo, e constituia uma ocasião unica para eu escutar as "pataculadas" dos ferrenhos adeptos do F. C. Porto, que nessa epoca andavam sempre a sonhar com os titulos que nunca conquistavam.
Eu, Sportinguista dos sete costados, escutava e ria-me interiormente com as suas analises futurologicas, que sempre saiam furadas.
Quando, voltava a ir lá cortar o cabelo, de uma forma subtil, perguntava sempre: "Então este ano é que vai ser, o Porto esta tão bem classificado que ainda lá vai. Pena que o Sporting esteja à frente por um ror de pontos", olhavam para mim com uma raiva contida e normalmente respondiam: "Esta equipa ainda vai dar que falar. São todos craques, precisam é de tempo", e eu para rematar dizia-lhes: "Pois vão ter muito tempo para preparar a próxima epoca, esta para o Porto já acabou".
Os "Tripeiros", sempre desconfiados achavam que eu lhes rogava pragas desportivas, e chegaram a perguntar qual era o meu clube, porque do Porto via-se logo que eu não era adepto. Ficavam sempre na duvida, e eu para brincar dizia-lhes que gostava muito da cor azul, mas o azul da camisola da Selecção Italiana.

As férias eram sempre uma altura de grande alegria, pois vinha sempre passar férias a casa da avô, o Luis. A casa ficava na montanha, com uma paisagem maravilhosa, de tirar a respiração, que fazia lembrar os vales da Suiça, e a avô era uma pessoa sempre tão calorosa com todo o mundo que até dava gosto visitar aquela casa, pois nos sentiamos os seres mais importantes do mundo. O exterior da casa era um paraiso de flores, sempre impecávelmente arranjadas, o relvado limpo e aparado, tudo sempre no lugar e com um aroma no ar que mais parecia uma perfumaria.
O Luis tinha um verdadeiro arsenal de brinquedos de tudo quanto de mais moderno existia, desde aviões que por telecomando andavam e levantavam a frente, simulando na perfeição o andamento na pista de um aeroporto, e inclusivamente o seu levantamento, até pistas de comboios electricos, com várias linhas, ramais, pontes e estações, de tudo um pouco existia.
Veio três anos seguidos passar as férias grandes de verão. Nunca saia do raio de acção da casa da avô, apenas podia deslocar-se para brincar fora se fosse na minha casa, e a avô ia lá leva-lo de manhã e busca-lo á tarde, e aproveitava para lanchar com a minha mãe.
O Luis era muito branco de pele, uma côr muito estranha de tão branca, parecia mesmo côr de leite.
No quarto ano não veio, e a casa ficou fechada, e nós ficámos com um verão mais pobre, sem a sua já habitual companhia.
A minha mãe recebeu um telefonema de LIsboa, e ficou muito agitada. Nessa altura não disse nada, todos estranhamos a não vinda do Luis para os seus habituais três meses de férias.
A minha insistência em saber o porque, era sempre acompanhada de mudança de conversa, e uma saida estratêgica da sala por parte da minha mãe, para apagar umas lagrimas que embora de forma disfarçada eu acabava por vêr nos seus olhos.
Anos mais tarde, confidenciou-me que o Luis era filho de uma das suas melhores amiga de juventude, uma grande lucutora de rádio e televisão daquela epoca, padecia de leucemia, por isso vinha para Cinfães sempre só nas férias, para casa da avô, e que nunca mais veio porque piorou da doença e veio a falecer.
Fiquei muito triste, mas pensei para comigo, ainda bem que lhe compraram tantos brinquedos bons e muito caros, para ele enquanto foi vivo e pode brincar, poder ter gozado a vida. Na realidade o dinheiro, compra quase tudo, mas não consegue comprar a saúde, o bem mais essencial, sem o qual de que nos vale poder ter todo o dinheiro do mundo.
O luis foi feliz, era um menino feliz, que tinha tudo mas que até dava os brinquedos a crianças mais necessitadas, e quando regressava a Lisboa, no final das férias, deixava sempre um brinquedo para cada um de nós. Ele escolhia criteriosamente aquele que tinha visto nós gostar-mos mais durante todo o tempo da sua estadia. E eu que tantas e tantas vezes brinquei e lanchei com ele, e ele na inocência da sua idade me dizia: "Sabes amigo João, lá em Lisboa, eu não posso viver assim no campo, moro numa casa grande com muitos vizinhos, mas aqui eu não vejo fome, agora lá em Lisboa, todos os dias lá vão pedir à minha porta comida ás minhas empregadas. É porque existe fome na cidade grande, aqui deve viver-se melhor, vocês não tem os brinquedos modernos que lá aparecem nas lojas, todos os meses, mas pelo menos tem sempre comida, aqui na casa da minha avô ninguem vem pedir comida à porta e quando brinco na tua casa também nunca vejo ninguem lá ir pedir comida".
Na realidade sei hoje que a fome existe tanto na cidade grande como na terrinha pequena do interior de Portugal, a diferença está em que na provincia mal ou bem todos se ajudam, e a pobreza é mais envergonhada, e numa cidade grande o individualismo impera, mas a pobreza é menos envergonhada, porque não existe a entre-ajuda da provincia.

Nenhum comentário: