terça-feira, 12 de junho de 2007

III - INFÂNCIA IRREQUIETA

Cinfães do Douro, foi o local escolhido, pelo meu destino, para o despontar da minha vida para a infancia. Vila situada no Distrito de Viseu em Portugal, com fronteiras com 3 rios, o Rio Douro, o Rio Cabrum e o Rio Paiva, colocada no Serra de Montemuro, a vila campesina, em que cada um dos seus habitantes possui o seu terreno com uma casa, umas ornadas com brazões a transmitir a ancestralidade, outras mais simples, mas quase todas viradas para o Rio Douro.
Recordo ainda a importancia de algumas Quintas ou Solares, como Santa Barbara, também conhecida por Sequeiro Longo, Casal de Bouças, Soalheiro, Bouça, Chieiro e Tintureiros.
Não posso esquecer a importancia da Capela de Escamarão e o Mosteiro de Tarouquela, para já não falar da Igreja Matriz de Cinfães, local mitico de brincadeiras e o centro social da vila naqueles tempos.

A preposito de Igreja; recordo agora a febre que foi para a juventude, as patranhas do Padre Adão, sobre a belissima vida que os jovens teriam á sua espera no seminário, onde até tinham piscina e pista de atletismo e campos de futebol.
Os palermas, incautos, não por vocação religiosa, mas para jogar á bola e ter uma piscina, lá se foram inscrevendo, para partirem alegres para aquele campo de férias, onde a imaginação dos primeiros anos de vida dizia que passariam toda a vida de molho na piscina e a jogar á bola.
Os paizinhos, todos vaidosos, lá os levavam á camioneta da carreira, como se chamava naqueles tempos, ao autocarro, todos inchados com o destino dos seus meninos, naqueles ultimos anos de Salazar e Cerejeira, Deus, Patria e Familia, ser Padre, era quase tão importante como ser Ministro da Republica.
Não que ser Ministro em Portugal nos anos 60, fosse o mesmo que em França, onde Ministro se é para toda a vida, mesmo depois de o ser, mas porque ser Padre naquela epoca dava um poder quase sobrenatural sobre aquelas almas, na sua maioria analfabetas e supersticiosas e dessa forma tão arreigadas a uma crendice de que quem dominava a vida social e politica era o Sr. Abade da terra.
Ser Padre tinha ainda a vantagem de uma ida para a guerra nas colonias, numa posição de destaque e com poucas possibilidades de levar com um balazio perdido, ou cair nas teias de alguma mina ou granada perdida.
Na imaginação dos petizes, estudos e outras actividades não iriam constar da estadia, só piscina e futebol, e no final sairiam Abades, para poder rezar missa, e passar a vida a comer e viver á farta, á conta dos crentes da Paroquia para onde fossem destacados. Ser Padre significava também terem ao seu dispor uma Maria qualquer em casa, a quem para o exterior faziam passar ser a mulher a dias, mas que na realidade da maioria das vezes se tratava da chamada mulher para todo o serviço, e quem sabe ainda oportunidade de "encornar" alguns incautos paroquianos que descansados com suas mulheres nas actividades religiosas nem desconfiavam do que se passava na sacristia.
O Padre Adão, até que era astuto, nas festas nem queria pagar a electricidade dos ornamentos luminosos de rua, bem que o meu pai o lixou!
"Ou paga a electricidade, ou arranja um dinamo, monta numa bicicleta, pedala, e faz nascer a energia para acender as lampadas dos festejos".
Até que o velho era mesmo herege, pode lá acreditar-se que nos anos 60, um tipo fosse contra o abade da terra, e o tratasse como outro cidadão qualquer. Só mesmo ele para isso.

Penso que o meu bom amigo de infancia, Tó-Bé, também foi para o Seminário, se saiu de lá Padre, é outra historia, mas que deve ter ido lá parar, isso não duvido!
Entretanto, a fé dava para me acompanhar em outras peregrinações.
Belos jogos de futebol, no Parque Serpa Pinto, fronteiro, a minha casa. jogos de intenso poder fisico, como o famoso "lá vai alho", que consistia em colocar 4 ou 5 amigos dobrados e apoiados nas costas uns dos outros em fila, enquanto os outros saltavam para cima das suas costas após gritarem "lá vai alho", o objectivo consistia em saltar alto e com força e tentar fazer cair os elementos da equipa que ficava por debaixo.
Concursos de pontapé na bola para o ar, para se vêr quem atirava mais alto. Eu até me treinei a conseguir colocar a bola no cimo do campanário, tocando no sino, e vindo a bola a cair pela escadaria interior, de pedra, degrau a degrau, até á porta, sempre fechada, e que com maior ou menor dificuldade, obrigava o Serafim, o Sacristão a abrir a porta que dava acesso ao campanario, para nos devolver a bola.
O pobre Sacristão que era um tonto, ou fazia de tonto, e hoje desconfio que mais qualquer coisa, do tipo virado para o lado do inimigo, aquilo que no Brasil é conhecido por "Veado", mas mais conhecido em Portugal por "Paneleiro", na realidade homossessual, lá resmungava mas acabava por ir buscar a bola e devolve-la ao pessoal.
Um dia esqueceu-se das chaves em cima de uma caixa de esmolas, e foi a festa total pois tomamos o poder da Igreja, podiamos abrir todas as portas, e andar por todo o lado, até ao alto do campanário fomos, e em sinal de libertação da ditadura tocamos o sino a rebate. Foi o terror total do Serafim, que só viu as chaves restituidas após um acordo que de nos devolveria sempre a bola, quando a mesma ficasse aprisionada em algum local da Igreja.
Para já não falar das grandes interpretações musicais, no grande orgão da Igreja Matriz, que se transformava no terror das velhotas nas horas das Trindades, Pai Nossos e Avé-Marias, porque na realidade a musica produzida não era mais do que acordes de terrifico som, tipo banda sonora de filmes de terror de 3º escalão.
Então lá vinha o Serafim, prestável Sacristão, a correr para terminar com as actuações, que obrigavam sempre á presença de 2 organistas, um para se sentar nos pedais que dão entrada ao ar nas tubagens do orgão, e eu como o grande compositor dos ruidos saidos daquela maquina infernal.
Enfim, convinha ao Abade ter um tonto próximo para não relatar com promenor e credibilidade as suas aventuras, e para este papel o Serafim era a pessoa ideal!
As missas dominicais eram sempre atractivo para brincadeiras nas ultimas filas de bancos corridos.
As idas á missa não serviam para ouvir a chamada palavra do Senhor, mas mais para brincadeiras com carrinhos, cromos e berlindes, que invariavelmente acabavam com o Padre a interromper a missa para chamar á atenção, até ao dia em que eu farto de tanto ralhete e leria, resolvi responder em directo, alto e bom som, ao Padre Adão: "... deixe-se de tanta converseta, e acabe mas é com a historia de andar a papar a boazuda da sua cunhada..."
Foi o fim! Na Igreja produziu-se um silencio de morte. O Padre Adão ia morrendo de vergonha, mudou de cor umas trezentas vezes, e ficou mudo, eu sai pela porta grande como os grandes toureiros em tarde de faena com direito a rabo e duas orelhas, com direito a uma volta completa na arena. O pior foi depois, grande parte da malta amiga durante muito tempo esteve proibida pelos pais de falar comigo, pois eu tinha levantado a mais do que suspeita do acto pecaminozo do Padre com a Cunhada.
Foi a primeira vez de muitas que ao longo da minha vida tive razão antes de tempo, pois que pouco tempo mais tarde, se viria a confirmar, na sua plenitude, as minhas palavras com resultados catastroficos.
Nunca mais na minha vida assisti a uma missa completa, e desde esse dia sempre olhei com desconfiança para a classe da Biblia e da Sotaina, e até hoje desconfio muito de todo aquele individuo que vejo andar a passear a Biblia debaixo do braço, e a refere como quem bebe água em cada fonte por onde passa, mas que na realidade do dia-a-dia não cumpre nada do que lá vem escrito e determinado.
Sempre, desde criança, me questionava como era possivel uma mulher engravidar e continuar a ser moça, a historia da cegonha e da vinda das crianças de Paris, dentro de um cesto no bico daquelas simpaticas aves, nunca me cativou muito, pois eu sempre escutara que para se ser mãe tinha que se fazer mais alguma coisa do que dar uns simples beijinhos. E as minhas duvidas em relação á Igreja e aos seus famosos dogmas não se ficavam por aqui, pois muitas vezes pensava, as velhotas passam as tardes por ali a rezar para não morrerem, e volta não volta uma embarcava para não mais voltar, ou melhor dizendo; descia em alguma estação do trem da vida. Das duas uma, ou não estavam a rezar direitinho, ou então aquela historia da salvação era uma grande patranha.
No fundo, apenas disse na missa daquele domingo, em voz alta, e cara a cara, o que todo o mundo dizia baixinho e envergonhadamente, nas costas do Padre.

Mas os tempos eram de castidade e respeito á autoridade dos Abades.
O meu pai que de santo não tinha nada, ainda me perguntou, sorrindo matreiramente, o que se tinha realmente passado.
Claro que o Abade deve ter-lhe ido dizer o ocorrido, com a sua versão, mas também acho que deve ter recebido cá uma resposta de se lhe tirar o chapeu e do tamanho do mundo, pois o pai nunca tinha papas na lingua, quando se tratava de responder á letra, ainda mais que ele conhecia as aventuras todas do Padre, e os locais escolhidos para passar alguns bons momentos com algumas paroquianas, de preferencia sempre fora da localidade.
Nós próprios, uma vez o encontrámos para os lados de Santa Barbara, no meio das giestas com uma senhora, e ficaram os dois um tudo nada atrapalhados. Obviamente que ninguem acreditou que tivessem ido colocar flores no pedestal da santa, ou que andassem os dois a apanhar giestas, a senhora deveria estar a apanhar outras coisas do Padre.
Mas as aventuras com o Tó-Bé e companhia não se ficavam por ai; certos domingos o coreto, ali no Parque Central da Igreja Matriz, tinha a banda tocar, em especial em dia de feira, e nós, grandes instrumentistas bem tentávamos, nos intervalos tocar algum instrumento de sopro, tipo tuba, saxofone, ou trompete, mas nada de som saia.
Como vingança, aproveitávamos a ida do pessoal da banda para molhar o bico nuns copitos de tinto ou branco, e zás, colocavamos em sacos plasticos a água do lago dos peixes mesmo ali á mão, e vá de água para dentro da tuba e de outros instrumentos de sopro!
Que risota, que delicia, quando queriam voltar a tocar e só saia água para cima da farda, ou da cara do camarada da banda mais próximo!
Era uma festa completa, muitas vezes acompanhada de uma chuva de cascas de tremoço por cima dos papalvos que rodeavam o coreto, absorvidos na beleza musical de uma banda que tocáva sempre o mesmo reportorio, semana após semana, mas que reunia uma verdadeira multidão de especialistas de boca aberta a olhar para o coreto, como se estivessem a assistir a um grande fenomeno musical.
Aquele coreto era mistico para nós!
Local de brincadeiras diárias, era também local de terrivel tristeza, pois por debaixo guardavam os cães apanhados pela carroça de recolha de animais abandonados, para mais tarde os abater com monoxido de carbono de uma fogueira.
Mas tantas foram as vezes em que o nosso acto heroico salvou umas quantas matilhas de fieis amigos!
Esperavamos que os bebados dos apanhadores se distraissem, e abriamos a porta á matilha!
Que alegria geral vê-los a saltar passando a porta, ladrando de contentamento pela liberdade alcançada!

Mas também existiam as brincadeiras perigosas e, nada de acordo com um País civilizado!
O jogo da pedrada! Que estupidez, andar a atirar pedras uns aos outros, e quantas e quantas vezes com uma cabeça partida pelo meio como resultado final.
Lembro-me do terror que tive ao atirar uma pedrada na cabeça de um colega de brincadeira, ai a uns bons 20 ou 30 metros de distancia, e com tanta destreza o fiz que não errei o alvo, e deu cabeça partida!
Fugi a sete pés para casa, mais parecia que voava, achando que o tinha morto, tal a quantidade de sangue que brotava da sua testa.
Na realidade vim a saber mais tarde que levou uns 10 pontos na testa, e que ainda hoje guarda a marca de um grande atirador de pedras, que ao longo da sua vida deve ter partido, sem exagero, para ai umas 6 ou 7 "tolas", a ultima das quais, já tinha os meus vinte e tal anos, e foi a de um Gendarme em plena Paris, não é que o tipo me deu uma informação errada, que me fez andar mais de 3 horas perdido. Eu não fui de modas, e quando por sorte, o voltei a encontrar do outro lado da avenida, nem pensei duas vezes, calhau na mão, olho e mão certeira, mesmo á noite e lá vai, pedrada no "bofia", resultado mais uma testa aberta, ainda hoje ele deve estar a pensar de onde voo a pedra que lhe acertou, e que lhe deixou imaculadamente marcada a testa.

Depois da proeza do jogo da pedrada, e da cabeça partida do meu colega, o terror era voltar á escola, reencontrar o tipo, e pior do que isso, encontrar o bando de valdevinos que moravam ao pé dele, e que por certo deveriam andar á minha procura para um ajuste de contas.
Mas como eu até que era popular, tinha uma boa guarda de honra de amigos, e o que deveria ter sido uma espera para massacre, virou verdadeira batalha campal no terreiro da escola, com confrontos entre um grupo e outro, que por sinal já tinham umas quantas desavenças a tratar.
Eu passei inculme dessa ameaça, e nem sequer estive na richa, fui avisado para me afastar que o assunto era lá com eles, eu já tinha feito o meu trabalho ao partir a cabeça ao outro elemento do grupo inimigo.
Bonito resultado, uns quantos olhos negros e escoriações, bem como alguma roupa destruida, e como placard final, o pessoal do cimo da calçada durante uns bons dias não podia descer aos nossos dominios, tal o "encherto" de "porrada" que levaram, e as ameaças de que nova dose poderia ser aviada caso os mesmos por alguma razão decidissem reincidir.

Que anos bons eu passei em Cinfães, com amizades verdadeiras e leais, como a do meu amigo da quinta grande, Quinta da Chieira, onde iamos comer fruta até fartar, e tomar banho nos tanques das lampreias, sem esquecer os saltos de mais de 5 metros de altura, para dentro dos cilos de forragem do gado, e as idas á adega ajudando em Setembro a pisar as uvas que davam o tão famoso vinho tinto do douro.
Ainda hoje recordo que as maiores maças que vi e comi em toda a minha vida, foram ali naquela quinta, onde nos deitávamos debaixo das latadas de uvas a comer até fartar, e nem sequer lavavamos a fruta. Era directo! Estender a mão e comer, com pó, insecticida e tudo, era uma total irresponsabilidade da nossa parte, e devido a isso, que barrigadas de fruta que o pessoal comia, e que dores de barriga seguidas das mais do que naturais "caganeiras" que em casa nunca tinham explicação quanto á sua origem.

E que dizer das aventuras nas minas de água e cobre, onde entrávamos nos tuneis, sem nos lembrar nem de perigos ou bicharada.
É bom não esquecer as subidas ao monte onde está o Sacrário de Santa Barbara, penso que se a memoria não me falha, se chama Alto do Talefe, pois tem lá no alto um marco geodesico, e que constituia sempre uma grande aventura, quase sempre só terminada já noite cerrada, com a descida feita ás escuras, sem vêr o caminho, entre pinheiros e giestas, sempre com o radar pessoal virado para que o caminho era sempre a direito e para baixo, até á estrada que conduzia ao camppo de futebol, junto da encruzilhada de estradas para o Rio Bestança.
Tantas as vezes se repetiu a aventura, até que um dia, a coisa esteve feia, no regresso de uma dessas incursões, fomos apanhados no regresso por um lobo faminto, a que a principio chamamos cão, e não fora o alerta da sua ferocidade na perseguição, bem como algumas diferenças de rosto em relação a um canideo, e talvez alguém lá tivesse ficado como repasto.
Que "cagaço"!
Durante meses, ninguem quiz ouvir falar de Santa Barbara, nem quando fazia trovoada!
As brincadeiras passaram sempre a ser para o lado contrario.
Sáfa que naquele dia foi mesmo por um triz!

As aventuras fora de casa eram unicas, mas em casa, quando estava impedido de sair, tinha que arranjar ocupação e andar sobre arames atrás do gato, sob a latada, era uma ocupação de alto risco, que me fazia entrar no mundo das estrelas, os meus amigos eram os espectadores e eu mostrava as minhas habilidades, com a destreza de um verdadeiro artista de circo. Passeava atrás do gato, de arame em arame, umas vezes equilibrava-me só num pé, enfim um sem numero de habilidades a mais de 2 metros de altura, dignas de um consagrado malabarista, com assistencia a aplaudir, e muitas vezes com o meu irmão, Carlos Alberto, a vir a correr acabar com o espectaculo, antes que eu esquecendo a não existência de rede me manda-se lá das alturas para o solo em salto livre, para junto da numerosa assistencia, que assistia incredula aos meus espectaculos circenses.
A varanda da casa tinha em todo o seu redor um parapeito exterior de cerca de 4 ou 5 dedos, essa era outra atracção do espectaculo!
Quem assistia debaixo, pensava que se tratava de um parapeito muito estreito, e então eu fazia todo o tipo de malabarismos, de um lado para o outro, só com um pé, e sem as mãos no parapeito a segurar-me, e outras arriscadas manobras malabaristicas.
Era um momento sempre muito aguardado pela assistencia, e de rara emoção, e eu brincava com a situação sem olhar a riscos de uma queda directa para o passeio publico.
Tempos de grande emoção, e rigor artistico.
Quem sabe se não se perdeu um grande artista de circo?

Eu via o pessoal do circo, tranpezistas e equilibristas no arame, e o circo era para mim uma arte nobre, a tal ponto que durante uma passagem do Circo Paris, por Cinfães, onde fiz amizade com Pedro, o filho do dono, me levou ao ponto de me deslocar á tenda para vêr ao vivo os ensaios dos tranpezistas. Mas uma nova atracção estava a nascer, e o Pedro levou-me para brincar com uma cria de leão, que na minha imaginação de criança, se transformou numa verdadeira fera, muito embora face á sua idade, não passava de uma gato bem grande, mas de alguma forma já perigoso.
Com a minha descrição da fera, em casa, vieram logo de imediato os problemas, pois todo o mundo acreditou tratar-se de um leão macho bem grande, o que levou a uma ida ao circo de alguém lá de casa, para apurar saber ao certo o que se estava a passar.
Descansaram o pessoal de casa, e eu fui proibido de entrar com o Pedro na zonas da bicharada.
Que frustação!
Logo agora que eu me imaginava a correr o mundo, com a tenda sempre cheia de um publico exigente a aplaudir-me todos os dias, e as miudas giras que o circo tinha, para já não falar das miudas da assistencia a paqueirar-me.
Na realidade as miudas giras do circo eram poucas, melhoravam bastante na hora da actuação, graças ao monte de pomadas que colocavam na cara, e aos fatos que usavam e faziam sobressair os torneados do seu corpo, um pouco melhores do que na realidade estavam, pois a celulite e as verrugas já por ali andavam, claro que para mim eram todas uns borrachos de se lhe tirar o chapeu, e aqueles artistas do Circo Paris eram na minha imaginação os melhores do mundo, só não conseguia entender porque razão viviam em roulotes tão miseráveis, vestiam no dia-a-dia roupas tão andrajosas e comiam tão pouco e mal.
Quanto ás miudas giras da assistencia, a minha imaginação estava tão nublada que nem reparava que se tratavam das mesmas miudas que todos os dias eu via por Cinfães, e que espreitava no recreio da escola. Espreitava, pois nessa altura as escolas estavam divididas, Rapazes para um lado o Raparigas para o outro, com um muro no meio do recreio a dividir.
O Pedro foi um dia almoçar a minha casa, e ia comendo tudo o que encontrou pela frente e era comestivel lá em casa.
Mas mesmo assim, eu naquela epoca, queria seguir a vida circense, ainda hoje olho para as gentes do circo com um carinho muito especial, e aquele amigo de 15 dias, o Pedro mesmo andando de terra em terra, de escola em escola, e passando fome e tantas outras privações, eu sentia que lhe sobrava alegria, parecia ser muito feliz, uma felicidade natural. A sua vida era aquela, e queria um dia seguir a vida dos seus pais, e continuar no circo.
Espero que tenha conseguido, porque ao longo da minha vida nunca mais encontrei o Pedro, e muito menos o Circo Paris.
Aí como eu hoje desejava saber se ele continuava feliz como naquela epoca, e como desejava também saber se tinha conseguido realizar todos os seus sonhos de menino de circo.
Quanto a mim, nunca cumpri o designios dos meus sonhos, e nunca entrei para a grande familia do circo, como artista, e hoje até tenho algum receio de andar nas alturas, e por mais simpatica que me pareça uma cria de leão, tenho serias duvidas que na actualidade lhe desse a mesma atenção e tratamento de carinho que lhe dispensei naquela altura. Resumindo estou convicto de que nunca teria dado um bom malabarista ou domador de feras, porque o meu destino estava delineado para tratar de perigosos gatos domesticos e no maximo subir a mais de 20 pisos acima do solo dentro de um elevador.

A vida em minha casa era pautada por rotinas diárias e regulamentos do tipo militar, que não se podiam alterar, sob pena de ganhar alguma penalização.
Existiam horas para levantar, horas para almoçar, horas para jantar e horas para deitar. A alimentação era um assunto a que de forma alguma se podia faltar ou atrasar, sob pena de forte reprimenda. Sair da mesa sem previa autorização do pai jamais se poderia efectivar, e falar, entrando nas conversas dos adultos durante a refeição muito menos.
A familia na verdadeira expressão da palavra existia de uma forma una e indivisivel, e quando hoje eu observo agregados familiares a que chamam familias, e onde não existem horas para almoçar ou jantar, e onde cada um come a sua refeição quando, como, e onde quer, e alegadas familias que quando sentadas a uma mesa permitem que todo o mundo possa opinar sobre os mais variados temas, sem respeitar as posições hierarquicas de cada um, fico deveras espantado e triste, pois perdeu-se de uma vez por todas o respeito e a união da expressão "familia" nos rituais mais simples, como por exemplo o da alimentação, que consistia numa hora de reunião em torno de uma mesa para se consagrar a importancia da união geral de um mesmo grupo.
A sopa era a imagem de marca das chamadas refeições grandes, e tanto ao almoço como ao jantar, não comer a sopa significava não tocar em mais nenhum dos pratos seguintes, para mim constituia um castigo inicial de cada refeição, que somente foi alterado no dia do meu 12º aniversário, em que o meu pai me concedeu um pedido, e o mesmo foi unicamente só voltar a comer sopa quando assim o entendesse.
O pedido foi aceite, e desde essa data muito raramente voltei a comer sopa, só mesmo quando me apetece, e tem que ser algo de muito especial, como por exemplo um bom creme de marisco ou uma boa sopa de peixe.
A hora de deitar era sagrada, e por muito que eu tentasse fugir a essa regra, não tinha qualquer chance. Nesses tempos a minha grande ambição era conseguir vêr na tv "Os Vingadores" e o "Santo" com Roger Maoore, um dos meus herois de infancia, mas tinha que o fazer ás escondidas, deixando estrategicamente a porta do quarto entre-aberta e ficando a espreitar ao longe.
A lei e a ordem imperavam de forma, para mim na altura ditatorial, mas que hoje, passados todos estes anos, sinto que foi imprescindivel na consolidação da minha formação enquanto homem.

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