quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

XXV - A NOSSA RUA É O CENTRO DO MUNDO

Viver uma determinada época das nossas vidas num local, e conviver dia-a-dia com um grupo especial de personalidades, transforma a nossa vivencia em algo que jamais podemos esquecer para o resto das nossas vidas.
Os jovens de hoje sentem-se desobrigados de conhecer a nossa historia pessoal, cívica e política, inseridas em documentos ou pela tradição oral consistente e consciente, por “ouvir dizer”, e muitas vezes incorrem em equívocos sobre o nosso passado.
Por outro lado existem hoje excessos terríveis na educação das novas gerações, levando muitos pais e educadores a dar demais, criando facilidades que mais tarde se vão transformar em revoltas, caso mudem os tempos áureos do presente. E ai o maior erro é exatamente a ausência da humildade, pois os jovens que hoje visivelmente recebem demais, jamais amanhã reconhecerão o valor desta virtude, tornando-se assim presas fáceis do orgulho, do desespero, da desesperança.
Com efeito, hoje existem pais e mães incapazes de um simples carinho, mas sabem comprar todos os brinquedos que estejam ao seu alcance, como forma de tentar assim recompensar artificialmente os filhos, o que mais rapidamente deseduca, transformando-os em pessoas consumistas e egoístas.
Mais tarde, dificilmente esses jovens conhecerão o valor da integridade do ser, limitando a sua percepção simplesmente á posse e ao poder. Quando chegamos a esse estádio da vida, tudo esta perdido, pois não existe qualquer plástica para a personalidade.
Por outro lado a palavra respeito parece ter perdido totalmente o seu verdadeiro sentido, e aquilo a que nós latinos chamamos de “respectum”.
Ou seja; uma coisa que se guardava no peito, e agora já não serve para nada. Mas houve um tempo, o nosso tempo de juventude, passado naquele Lavradio, em que o respeito era a consciência falante da dignidade. Foi um tempo que não volta mais, e que fez de todos nós melhores homens e mulheres.
Ter vivido na Rua Grão Vasco no Lavradio, em época tão rica em termos de personalidades e acontecimentos, é algo de que me vou orgulhar por toda a minha vida. Foram vivencias que capitalizaram o meu sentido da vida, de justiça, de vida real que muitas vezes se supõe não existirem em parte alguma do mundo, mas que realmente acontecem.
Hoje, passados todos estes anos, o meu relacionamento, a minha ligação ao local é pouco mais do que simbólica. Viajar hoje lá é como que reencontrar apenas os locais, e imaginar os sons e cheiros que jamais voltam a aflorar de modo real á minha mente e aos meus sentidos.
Olhar hoje para o 1º andar, do numero 17, da Rua Grão Vasco, obriga a fechar os olhos e imaginar o interior do que foi a casa dos meus pais durante alguns anos, e no fundo a minha própria casa, com o meu quarto, os meus espaços próprios, onde guardava os meus segredos, os meus arquivos de recortes jornalísticos, alguns esqueletos de escritos nunca publicados, os meus discos, a minha intimidade.
Ir hoje aquele local é percorrer uma viagem dolorosa pelo passado, um via sacra por momentos felizes, por recordações de um passado que marcam indelevelmente a nossa vida.
Olhar para os edifícios e não conseguir reconhecer os rostos que por ali surgiam, e ver em seu lugar, nas varandas ou a espreitar por entre as cortinas das janelas, novas caras, quando antes se abriam as janelas de par em par, com todos os rostos conhecidos, familiares, é entrar numa nave espacial do tempo e, viajar anos luz para a frente neste novo tempo, e não conseguir reconhecer nada do passado, que por nós foi tão intensamente vivido.
Nos últimos dez anos poucas vezes retornei á Grão Vasco, e sempre que isso aconteceu, a melancolia tomou conta de mim. Olhar para o edifício onde morei quase duas décadas e não reconhecer nenhum vizinho, nenhuma ligação ao local em termos humanos, olhar os rostos que por mim se cruzam no meio da rua, olhando de espanto para mim, perante algum cumprimento mais saudosista de alguém do nosso passado que me acabou por reconhecer. Mas não são poucas as dificuldades de memória, e que me levam muitas vezes a que tenha dificuldade em identificar, e pensar que se hoje tudo está tão diferente, então como será amanhã, quando ninguém restar, dessa gente que compunha a imensa “família” da Rua Grão Vasco.
Hoje já são poucos, raros os rostos que me dizem algo, e pensar que; as referencias do passado, na sua maioria, já não moram ali.
Onde estão os irmãos Julio e Idalecio? No Alentejo? Na Alemanha? O Mario Resende, já partiu para a sua nova casa no Barreiro! E aquela senhora, dentuda de cabelo bem alvo, naquele R/ch, só pode ser a mãe do Azevedo, o nosso tão famoso Azedo, sim ela ainda ali resiste, ainda resistia na ultima vez que eu passei em Agosto de 2006 na minha, na nossa Rua.
Os Pelejas já mudaram á muito, e em frente o Saul já partiu para a sua ultima morada, tal como antes dele o Cabanas e o Carlos “Marmitas”, e o Alegria, e o seu vizinho Carlos Santos e até o “Pilicas”, e o meu pai e a minha mãe, e claro eu estou mais velho, e também um dia irei, para não mais voltar aquela Rua, tal como o pai do Victor “Vitinha” que não vai mais á caça com os seus furões, e que é feito do Bito, do Joãozinho, dos pais do Calado Miguel, da mãe do Pedro Super, da “Coxa” viúva do Alegria, e o Carlos da Raquel, será que ainda atiram a loiça um ao outro quando a coisa azeda, e a “Varina” e o Carlos, e o Carlitos que é dele? E o Sr. Costa, o pai do Costinha? E como será o dia em que a imortalidade chegar para o Mario Núncio e a D. Miraldina? Ai... sim! Esse dia vai acabar por chegar e ser doloroso demais para mim, pois são a ultima, a referencia final da nossa Rua, os pais do “Quim-Zé” do Mario “Marinho” e do Pedro “Pedrocas”, são assim como que os últimos guardiões da historia da Rua Grão Vasco.
E eu tenho tanto medo desse dia chegar, pois será como que o juízo final, como que o implodir da nossa Rua, do nosso mundo. O fim do fim de quase tudo o que resta da nossa imaginação de meninos e moços.
Obviamente que na vida tudo tem um principio de um fim, mas nós tentamos sempre adiar o fim anunciado, com a idéia de que se podem sempre fazer reinícios na vida, o que é totalmente falso e destituído de fundamentação.
Eu, quando ali cheguei, criança de 4ª classe primaria, encontrei no local onde hoje esta uma imensa urbanização, um quinta, sim uma quinta, a Quinta do Facho, com o rio ao fundo, era o campo, era o mundo rural ao pé da porta da urbanidade do progresso.
Hoje é só urbanismo, betão e alcatrão, é compressão humana em altura, onde antes era espaço, tempo, natureza, humanidade, hoje é a diferença total e até o tempo parece ser compassado por outro ritmo, com uma cadencia impossível de parar e totalmente acida para a vida.
Se fechar os olhos, ainda posso ver a barreira enorme que ali existia, a casa do Facho ao fundo da quinta, as palmeiras, a mina de água com as plantas de sinzal em volta, cheias de figos a despontar dos seus bicos aguçados, planta a que chamávamos cacto grande, e realmente eram mesmos cactos enormes.
E ainda recordo também o caminho de terra batida, que ladeava a propriedade e conduzia á Baixa da Banheira. Aquele caminho arenoso ali junto do Sucateiro, que recolhia as suas tralhas com a velha carroça, puxada por uma mula mais velha que o tempo, de tão velha que nem ele mesmo lhe sabia a idade.
Aquela carroça, sempre escoltada pelo cão grande, cheio de pulgas e carraças a ladrar atrás. E não esqueço também muito bem na minha memória, o outro cão grande e negro, que ele mantinha preso a uma corrente velha e ferrugenta amarrada a um pneu já sem idade e cheio de cimento, para evitar que o animal fugisse com o pneu a reboque, dali de junto da sua barraca que lhe servia de casa e escritório.
Se me concentrar muito, ainda consigo ver a minha mãe a caminhar por essa vereda arenosa, nas suas viagens diárias até a casa do meu irmão, para ir ver as netas queridas, a Carla Margarida e a Filipa Isabel. Aquelas netas que de tanto que gostavam dela, logo que ficou doente, e já não escorria com uns trocados para gastar nos vícios de criança, logo foi esquecida e nunca lhe conseguiram chegaram ao pé, para a simplesmente a visitar no Hospital. Sim o Hospital, onde acabou por vegetar os seus últimos três dolorosos anos de vida, ligada á vida artificial de que só a muito pedido pessoal, uma mão amiga a conseguiu arrancar, para viver realmente a sua vida noutra galáxia, a da sua imortalidade na minha memória.
Sim consigo imaginar a sua caminhada diária, sempre com um carrinho de compras puxado com esforço no meio do areal do caminho por um mão já calejada pelo tempo, e a outra a segurar um chapéu para se proteger do sol, o tal famoso chapéu que o meu pai dizia servir para regar as flores á meia noite...
Ai!... Como a memória é espantosa, e ainda consigo recordar o tanque grande redondo junto da casa do Facho, com as laranjeiras e os limoeiros. E do outro lado da vereda os eucaliptos enormes que abrigavam e davam sombra á barraca do cigano Toy, que surrupiava dinheiro á mãe e á velha avó, para ir trocar por uma caixa de piões que a Dona Candinha vendia na sua marquise, improvisada de loja, ali junto do tanque de natação, bem ao lado da escola primária. Esse local era mítico para nós. Era também ali, na D. Candinha, que se compravam os cromos da bola, com o “cabeçudo” do Eusébio, a ser sempre o mais difícil da caixa, e por uma vez única o Freitas do Futebol Clube do Porto, a contrariar a regra habitual, prenuncio que os tempos de gloria do “Pantera Negra” estavam a acabar, até nas caixas de cromos da bola.
Era também ali que nos era fornecida a artilharia para a loucura do carnaval, com as rabichas e os estalinhos, e claro as famosas bombinhas de mau cheiro que faziam as delicias em alguns locais.
E o café, sempre o café da nossa Rua ali como ponto de referencia e reunião de uma comunidade que vivia unida como uma família, uma comunidade que era feliz, mas que nesse tempo nem sabia o quanto!!!
Até os jogos de futebol no meio da rua, com duas pedras a improvisar as balizas, faziam parte da harmonia da rua, porque se corria, gritava, jogava para ganhar o nosso mundial, no fundo vivia-se.
Hoje abro os olhos desses sonhos intensamente vividos, e vejo simplesmente uma rua igual a tantas outras que conheço por esse mundo fora.
Uma rua que é hoje igual ás ruas cruas da vida normal, das cidades e vilas normais. Uma rua onde me dizem os jovens de hoje, que não se joga mais á bola, que hoje é um local desumanizado, criador de solidões, de abandonos, um local em que o mundo normal acabou por conseguir finalmente conquistar o seu espaço.
Antes era um mundo impossível de ser conquistado, era a Grão Vasco do Lavradio que conquistava o mundo. A nossa Rua era o mundo, era para todos nós o centro do mundo, como se o café fosse o nosso Capitolio, o Partenon e a casa de cada um, e ao mesmo tempo a extensão da casa do outro, numa vida em comunidade, no entanto cheia de independência e ao mesmo tempo de solidariedade.
Essa causa comum de viver numa certa interligação comunitária fazia-nos viver aventuras desmedidas, em termos realismo e de execução.
A chamada loucura da ida aos pássaros com rede e visco era de tal forma absorvente que com transporte ou sem, todo o mundo acabava por fazer questão de participar de forma efetiva.
Naqueles tempos, por questões de mobilidade ia-se de moto, mas o Saul não tinha medo de arriscar uma deslocação numa bicicleta puxada por uma moto.
Numa dessas gloriosas deslocações, diria mesmo caçadas, e depois de uma noitada de colocação de redes, e da recolha dos pássaros lá pela madrugada, na zona de Rilvas, resolveram regressar, e assim, ao romper do dia, lá amarraram a bicicleta do Saul á moto do Alfredo e vieram de regresso ao Lavradio. No entanto já dentro da Vila de Alhos Vedros, e após uma aceleração maior numa curva mais apertada; acabaram por deixar o Saul sair de frente de rojo pelo chão com os joelhos nos paralelos da rua.
Foi o delírio total, com os joelhos totalmente arrasados e em carne viva, e a bicicleta com o volante partido. A chegada ao Lavradio foi assim triunfal, com os joelhos mandados abaixo a sangrar e ao mesmo tempo a mulher a “zurzir-lhe” a cabeça, perante a risota geral dos presentes, que em grande número, como não podia deixar de ser, junto do café da nossa Rua, se deliciavam com o relato das aventuras da noite e madrugada.
Mas nem só de aventuras exteriores se vivia, e alguns problemas de sociedade também existiam, se bem que a comunidade soubesse lidar bem com algumas questões, como o problema do Delfim, um “homenzarão” com farto bigode, que á primeira vista, para quem não conhecia, parecia muito forte física e psiquicamente. No entanto, tratava-se de um homem a necessitar de ajuda para as suas taras sexuais, e para as imensas crises que lhe instalavam o caos na sua mente e que ele próprio assumia, dizendo que dormia sobressaltado com sonhos terríveis, tendo algumas vezes sido visto aos gritos na varanda contra os “Turras”.
A mulher e os filhos viviam em constante sobressalto, com medo que algum dia pudesse cometer alguma loucura. Ele dizia que dormia todas as noites com uma arma debaixo do travesseiro, e tudo isto devido a um trauma adquirido na guerra colonial ultramarina, onde esteve num palco de guerra difícil, tendo ficado dessa forma afetado para todo o resto da sua vida.
Mesmo defronte da casa do Delfim, ficava a casa do Joãozinho, que na verdade pouco tinha de diminuto no tamanho, antes pelo contrario, pois era um homem com bem mais de 1,80 metros de altura e para cima de 100 kg de peso, e bastante musculoso.
Morava no R/ch, e como a sua esposa fosse de certa forma atraente, alguns olheiros mais atrevidos, dedicavam-se á nobre arte de andar a espreitar pelas frinchas das persianas do quarto, tentando ver bem mais do que serie normal.
Um belo dia, um desses observadores atrevidos, resolveu fazer uma visitinha nas janelas da casa do Joãozinho, no entanto ele apercebeu-se de que estava a ser observado. De forma estratégica disse á mulher para se deixar ficar, como se nada estivesse a acontecer, que ele ia só á sala. Acabou por sair sorrateiramente de casa, dando a volta ao edifício, e sem mais, apenas tocou no ombro do observador que espantado com a companhia, ao voltar-se para ver quem era o novo companheiro de observação, levou um valente soco num dos globos oculares, que o deixou ko.
Nesse dia, mais nada rigorosamente aconteceu, no entanto no dia seguinte, e perante o comentário publico feito no café pelo Joãozinho, e perante o espanto geral, foi visto o incauto observador munido de óculos escuros, e com toda a região do globo ocular bem negra.
Quase ninguém acreditava que aquele digníssimo cavalheiro, pudesse andar a espreitar pelas frinchas das persianas das janelas, para assim andar a observar em trajes menores alguma senhora, ou ver algum casal em pleno relacionamento intimo.
Mas por vezes essa situação estratégica de espreitar pelas frinchas das persianas não é tão indesejada assim. Já sem saber muito bem como, conheci durante um jogo de futebol realizado no ringue junto da piscina, uma jovem bem mais velha do que eu, a Celeste, que vivia com uma tia num R/ch do Parque dos Pardalitos, ali no Lavradio.
Era para a sua idade demasiado desenvolvida fisicamente, e porque não dizer, também emocionalmente. Daí que para além de me escrever longas cartas de erótico amor, que me fazia chegar das formas mais variadas, se dedicava também a desafiar-me para a um dia a ir ver através das persianas do seu quarto. Prometia mostrar isto e aquilo, e fazer isto e aquilo, só para eu a ver, e ela ter o prazer de saber isso.
Andei logo tempo imaginando se seria razoável e normal uma tal situação, e se não iria acabar por ser apanhado a espreitar pela janela, ainda mais que se tratava de um local publico de muita freqüência.
No entanto um dia não resisti, e combinei com ela uma ida a essa autentica projeção cinematográfica ao vivo.
Para mim foi um dia de deslumbramento tanto pela positiva como pela negativa.
Assim ela, á hora marcada, já fora do horário de maior movimento no passeio junto da casa, se não me falha a memória era o R/ch, esqº do numero 26, tinha a luz acessa como sinal. Eu lá fui, tremulo e receoso do que iria encontrar e do que poderia acontecer.
Lá estava ela, realmente, com o quarto simplesmente iluminado pela luz de um candeeiro da mesa de cabeceira, e dedicou-se a fazer para mim um autentico strip completo, a que nem faltava a musica ambiente do filme Emmanuelle.
Depois veio o deslumbramento pela negativa, pois o seu corpo não era muito bem aquilo que eu tinha idealizado, face á opulência que se podia imaginar pela imagem debaixo do vestuário. Depois, ela não contente com o strip, ainda decidiu dar um autentico espetáculo extra com auto excitação, e introduzir no seu corpo, nos locais mais íntimos alguns estranhos objetos, que para mim nessa época eram uma total novidade, hoje sei tratar-se de ‘vibradores’ e material afim.
Perante a exibição, deduzi que se fazia aquilo a ela própria, então já o deveria ter feito com muita gente ao vivo.
Decidi na hora cair fora dessa minha atração sexual, e o que para alguns continuava a ser um deslumbramento imaginário, para mim virou uma total desilusão.
Ao longo do tempo fui encontrando essa mulher, um pouco de longe em longe no tempo, e por incrível que possa parecer jamais eu consegui ter algum relacionamento intimo com tal pessoa. Sempre lhe consegui falar, mas lamento ter que reconhecer que mesmo face aos muitos e descarados convites ela me metia um nojo a que eu não conseguia minimamente dar a volta.
Resumindo; podemos muitas vezes até ver, muitas vezes até imaginar que se pode gostar, mas daí até realmente se querer poder conquistar e desfrutar vai uma longa distancia, que só a mente e a nossa personalidade é capaz de controlar.
Por sorte não tive razoes de queixa na observação em termos de acidente, mesmo porque estava previamente autorizado, a participar naquele autentico ‘fetiche’ da Celeste, mas sei de outros, que se dedicavam a essa arte com muito menos sorte, alguns até muitas vezes com conseqüências algo trágicas.
Mas os acidentes aconteciam não só por causas mais próprias da bisbilhotice. O João Lagarto, além de meu amigo de infância esteve quase para ser meu cunhado. Acabei por namorar com a Maria do Céu, ainda durante uns bons anos. Mas o João era exímio na condução de motos, de motos todo o terreno, e de tal forma aventureiro que numa brincadeira acabou por ficar cego de uma das vistas, irremediavelmente perdida, pois muito embora os pais tenham gasto uma fortuna com consultas medicas em Barcelona e em outras renomadas clinicas da Europa, nada havia já a fazer.
Curiosamente o João era atreito a acidentes, no mínimo curiosos, veja-se; um dia no decorrer de um dos nossos torneios de dardos, e no preciso momento em que eu atirava ao alvo, ele resolveu passar em frente da linha de passagem do dardo, o resultado foi um dardo espetado nas costas, com ele aos gritos a correr para casa ainda com o dardo espetado a abanar.
Todo o pessoal entrou em delírio, e larga gargalhada, dizendo que eu tinha morto o lagarto com um dardo na cauda, foi uma risota geral que não parava, mesmo perante a gravidade da situação.
Todos os jogos desde sempre me fascinaram, mas nada comparado com a paixão que desde muito cedo me fascina por jogos de loto ou bingo, como lhe queiram chamar, talvez pela grande influência que os mesmos despertaram na minha juventude.
Embora fosse um jogo ilegal, fora dos locais aprovados por lei, muitos clubes de bairro serviam-se desse expediente para ganharem algum dinheiro extra, e eu sempre que podia lá me deslocava no intuito de sacar algum dinheiro extra, fora dos rendimentos habituais.
Na realidade eu tenho como que um estigma, um faro pessoal, que me indica quando devo ou não arriscar, e ao longo da vida já ganhei bom dinheiro neste esquema. Aqui mesmo no Brasil, local onde pela primeira vez joguei em maquinas de leitura de cartões cartonados, já retirei bom dinheiro. No entanto jamais joguei em bingos eletrônicos, pois considero isso uma verdadeira máfia controlada, se bem que também o bingo cartonado tenha as suas jogadas sujas. E qual é o jogo existente no mundo, totalmente limpo de trapaças? Nenhum!
Nos meus tempos de juventude o cartão era fixo, marcado com feijões ou tampinhas “caricas” de cerveja ou refrigerante e custava normalmente não mais de 2$50, sendo que em alguns locais a jogada especial custava 5$00. o Desportivo do Lavradio era nessa época o local mais próximo onde se poderia jogar, alguns dias da semana. Curiosamente mais próximo para nós e para a polícia que tinha uma esquadra a cerca de 100 metros de distancia da sede desse clube. Funcionava num esquema de entrada pela sala do bar, ao lado do balcão, e saída pelas traseiras quando as coisas aqueciam. Sim a saída de emergência era pela Quinta do Bastardinho, pelo beco que dava de frente para a fábrica dos gelados, servia para se puder fugir, caso a policia decidisse aparecer, o que raramente acontecia, pois na sua maioria eram coniventes com a situação, e mesmo alguns agentes até se podiam encontrar na sala a arriscar alguns trocados.
No Lavradio desses tempos, existia uma outra sala de jogo clandestino, nos fundos da barbearia da Avenida J. J. Fernandes, onde os futebolistas se dedicavam a umas cartadas a dinheiro e a uns jogos a moedas, em máquinas eletrônicas, tipo caça moedas, também ilegais, mas muito utilizadas em Espanha, um pouco por todo o lado. Era assim como um míni casino, que em algumas horas também servia de bordel, contando com a visita de algumas jovens, sempre desejosas de provar outros petiscos, e claro receberem também algumas notas para comprar uns vestidinhos extra. Acho que deve ter sido por essas bandas que a famosa Anabela do Chalana, e a irmã do Bragança se iniciaram nas lides artísticas, e conquistaram a celebridade.
A Baixa da Banheira era à época um poço de locais com jogos ilegais, com o salão do saudoso Racing da Baixa da Banheira a ser o campeão dos prêmios, seguido da sucursal do Barreirense, que até funciona numa cave com entrada exterior á sede, ali bem no inicio da Baixa da Banheira, ao lado da Churrascaria dos frangos com coco.
Recordo ainda uma celebre noite em que me desloquei ao Racing, com o José António, e estávamos diabólicos na feitura de bingos, de tal forma que o José António acabou por perder a compostura, e ao fazer mais um bingo, gritou “chega é para o pilinhas!” o resultado foi imediato, pois de tão irritados que estavam com a quantidade de bingos que nós, forasteiros, já tínhamos feito, que resolveram aproveitar para pagar o premio de mais aquela jogada vitoriosa e expulsar-nos da sala, porque segundo eles estávamos a criar desacatos... ao seu bom funcionamento, e foi assim que acabou uma das noites melhor sucedidas no bingo do Racing. Mas outras mais, ainda se seguiram posteriormente, até que acabaram com o jogo no local, e anos mais tarde acabaram também com o clube, fundindo-o com outro e criando uma nova agremiação desportiva local.
Nós próprios, nomeadamente os dirigentes á época dos Leões do Lavradio, acabamos por criar um bingo de pequenas dimensões que funcionava de modo bem modesto e claro artesanal.
Eram momentos bem passados normalmente com o Saul a cantar as bolas saídas, e que eram tiradas de um saco de flanela opaco de cor laranja, feito de dois panos do pó cozidos. Bolas sempre cantadas com ironia e boa disposição para conseguir a risota geral, perante a sua cantoria seqüencial, com números como por exemplo 1, primeiro; 90, ultimo; 22, dois patinhos; 88, colhões do sutã; 69, pra cima e pra baixo; 28, binteoito; 11, dia de são cabrão; 6, meia dúzia; 12, dúzia, e outros adjetivos de numeração alfanumérica pouco dignificantes e coincidentes com a linguagem corrente atual, mas que por incrível conseguiam batizar e assim dar nome a toda a numeração do bingo.
As receitas ali obtidas, nos Leões do Lavradio, eram escassas e a troca dos valores era normalmente feita á posterior, já no café para se evitar confusões, dizer ainda que como não se tivesse energia elétrica, nos primeiros tempos, os sorteios eram realizados sob a iluminação de luminárias alimentadas a petróleo ou a gás.
Por vezes o bingo dava lugar a uns jogos de lerpa com rebuçados para mais tarde serem convertidos em dinheiro, mas o que acontecia era uma enorme confusão e invariavelmente a troca era sempre feita com resultados desastrosos, mesmo para quem tinha a certeza dos ganhos, pois entretanto alguém ia comendo os rebuçados, e no momento da conversão as contas davam resultados desastrosos, mas doces para quem tinha comido os rebuçados.
Mas os Leões do Lavradio não eram só jogos ilegais, a primeira razão da sua criação foi dar cobertura em termos de organização aos apaixonantes jogos de futebol de solteiros contra casados que se realizavam no campo pelado dos Leões do Lavradio, clube entretanto criado com a ajuda em especial de alguns benevolentes Sportinguistas dos 7 costados, que contribuíram com a terraplanagem do terreno e a colocação das balizas, bem como o levantamento da pequena sede desportiva, composta por duas pequenas salas. De salientar que as maquinas para a terraplanagem foram conseguidas pelo Sr. Celso, o pai do João Lagarto, que assim num simples fim de semana procedeu ao trabalho, de forma graciosa.
Depois eram partidas de futebol, cheias de historia e claro de muita “sarrafada” á mistura nas canelas e não só, e por vezes também alguns acontecimentos alheios ao próprio jogo, e que dessa forma contribuíam para animar o pessoal de modo extra.
Claro que ninguém que viveu essa época poderá esquecer-se dos bons “coiratos” assados que se podiam comer no final dos jogos, acompanhados das frescas cervejas.
Existiam jogadores míticos, como o Mário Resende, que defesa duro e rigoroso efetuava marcações impiedosas sobre os perigosos avançados, fazendo lembrar pelo estilo e compleição física o Jorge Costa, ex-capitão do Futebol Clube do Porto.
Quando a baliza da equipa dos casados era defendida pelo Saul ou pelo Lê, tínhamos a garantia de se poderem marcar golos de belo efeito, mas ao mesmo tempo obrigavam os jogadores da linha avançada, tal como eu, a terem que ter muito cuidado nas jogadas de área, pois eles eram temíveis na defesa da sua baliza, não atacavam diretamente a bola mas sim diretamente o jogador que a conduzia o que obrigava a tomar as devidas providencias em cada momento de jogada de ataque para defesa das nossas canelas.
Depois existiam jogadores fora de serie, eu diria mesmo fora de campo, como o Manuel “Cambuta”, que com a bola nos pés não parava de correr sempre em frente, sem olhar nem para colegas de equipa ou adversários, derrubando todos os obstáculos que lhe surgissem ao caminho, e que um celebre dia protagonizou um dos episódios mais pitorescos vividos naquele histórico campo, e que tem tanto de perigoso como de hilariante. Assim alguém resolveu partir um bom grupo de garrafas de azeite, junto de uma das laterais do campo que tinha um desnível e um buraco. Logo por azar o Manuel “Cambuta” correu por aquele extremo do campo e de um momento para o outro desapareceu da nossa visibilidade, tendo caído direto no buraco. Nós ao principio pensamos que fosse brincadeira dele, ao não surgir, depois só conseguíamos escutar os seus gemidos de Ai!, Ai!..., e quando nos aproximamos já ele estava de joelhos, todo cheio de sangue e com vidros espetados por todo o corpo, em especial nos joelhos. Resultado direto de ter caído com a bola em cima das garrafas partidas que alguma criatura idiota ali foi despejar. Poderia ter sofrido um grave acidente, no entanto após cuidadosa retirada dos vidros do seu corpo pudemos verificar que apenas se tratavam de simples e pouco profundos cortes.
Ele era exímio neste tipo de acidentes caricatos, e em outra ocasião conseguiu em plena corrida, enrolar-se totalmente só com a bola, e dar um trambolhão enorme em que ficou cheio de mazelas provocadas pelo arvoredo rasteiro e as pedras existentes no local onde acabou por ir tombar.
Mas futebol habilidade era para quem sabia realmente da arte como o Julio, os muito habilidosos Idalecio e Mario Núncio, sem esquecer o Pedro Núncio que embora pequeno no tamanho, esbanjava talento por todos os poros, e claro os incontornáveis Jorge, Alfredo, Alexandre, José Antonio, Pedro “Super” e como guarda-redes o inconfundível Carlos “coxo”. Para mim o Joaquim Núncio “Quim-Zé” era como uma copia local do famoso Baresi italiano, pois pautava o jogo de tal forma que mais parecia um maestro a comandar a equipa.
Eu entrava nestas equipas como goleador, sempre jogando na frente de ataque, esperando as bolas que lá fossem colocadas ou que por algum atraso mais displicente para ali fossem encaminhadas. Muitos diziam que eu passava a vida á “mama”, mas na verdade eu conseguia fazer milagres, marcando golos quase impossíveis e falhando ao mesmo tempo golos meio feitos, para grande desespero da restante equipa.
Não sendo um pé de chumbo, também não era nenhum craque tipo Paulo Rossi, obviamente que seria impossível a contratação para qualquer equipa digna desse nome.
Os clubes locais do nosso convívio, eram nessa época e por razões dispares o Sporting Lavradiense, a SFAL, e a SRCL.
O Sporting Lavradiense, obviamente por razões clubisticas da maioria e também porque alguns diretores eram nossos amigos ou pertenciam simultaneamente aos dois espaços.
A SFAL porque tinha mesa de bilhar e snoker, xadrez e uns bailes nada maus em termos de bar e buffet, muito em especial na época do carnaval e também o seu famoso baile da Pinha.
A SRCL porque se podia jogar ás cartas e beber uns copos, muitas vezes para além da hora normal, isto para além de umas festas ao ar livre que até não eram assim tão más em termos de bonita presença feminina.
A rivalidade existente em termos desportivos, no entanto mantinha-se, pois o pessoal da SRCL tinha a mania que era campeão de futebol de salão, e nós tínhamos realmente muito boas equipas, mas reconheça-se que eles não eram assim tão maus, e que tinham bem mais organização para participar em torneios.
No entanto tenho que reconhecer que; muito embora de alguma forma desorganizados, as vitórias em torneios relevantes na Moita, no Luso e no 31 de Janeiro, não deixaram por isso de acontecer, para nosso delírio e orgulho bairrista.
A convivência entre gerações sempre foi para nós uma imagem de marca naquela época, e com a devida salvaguarda em termos de respeito por parte dos mais novos, perante os mais velhos, todo o mundo se conhecia e respeitava de forma que se conseguia chegar a um estádio muito perfeito de entendimento sem grandes lutas de geração.
Um desses exemplos foi que durante meses dividi as minhas viagens de barco para Lisboa com o amigo Mário Resende, e como que montamos um esquema para beber uns cafés á conta de alguns incautos otários, que se dedicavam a jogar á sueca a bordo, a troco de um café por pagamento da vitória no jogo. Assim, invariavelmente o café da manhã, e muitas vezes também o da tarde, eram pagos por esses beneméritos benfeitores da nossa carteira.
Entretanto a minha vivencia no Lavradio coincidiu com a época própria para tirar a carta de condução, e o “Chico Aroles” foi um dos meus companheiros no momento de freqüentar a escola de condução para preparar o exame obrigatório.
Como grande trabalhador, iniciou a recolha de fundos para a aquisição de um carro, muito antes de ter sequer assegurado a carta de condução, muito antes até de se ter submetido ao exame de código.
Decidiu ir trabalhar para uma padaria durante a noite, e assim que teve o dinheiro necessário, não escolheu mais, comprou um VW carocha, a que passou a dedicar boa parte do seu dia, em lavagens diárias e polimento dos cromados.
A facilidade na admissão ao serviço na padaria teve que ver com o Manuel “Padeiro” seu vizinho de prédio que habitava logo no andar superior ao seu. Essa figura típica que nunca entendemos muito bem em relação ao seu relacionamento matrimonial, pois muito embora ninguém lhe perguntasse nada, ele não parava de se gabar que jamais seria “cornudo” e outros adjetivos afins, o que era muito estranho, pois a sua conversa descambava sempre nesse assunto pessoal.
No entanto, por seu lado a sua esposa tinha uma vivencia tão estranha que; para além de uma língua bem afiada e comprida e sem tamanho, dava toda a sensação de que tudo quanto ele falava não se acabava por escrever na realidade.
Mas lá da casa do “Padeiro” o que saltava mesmo á vista era a “mamalhuda” da filha mais velha que possuía uns apêndices mamários exageradamente invejáveis para a idade.
O edifício onde ficava a casa dos pais do “Chico Aroles”, era nem mais nem menos que o mesmo do café da nossa Rua, e onde habitavam ainda o “Pilicas” o “Padeiro” o Pedro “Super”.
Assim para além das lavagens dirias do VW Carocha junto do café, e dos polimentos dos cromados, o “Chico Aroles”, dedicava boa parte do seu tempo livre diário, sentado a admirar o interior da viatura. No preciso dia em que tiramos a carta de condução, o “Chico” desde logo organizou uma deslocação a Lisboa, para assim estrear oficialmente a viatura, a saída foi feita com pompa e circunstancia com um bom grupo de animadores a bordo, de que se destacava o Luis Costa, sentado no chamado “lugar do morto” e sempre na primeira linha dessas farras.
O “Chico Aroles” como condutor largamente exímio, e experiente, logo na passagem pela zona da localidade de Coina, sem se saber muito bem como, conseguiu enfeixar-se num enorme deposito plástico do lixo.
Imagina-se a razão, uma vez que a iluminação da viatura também não era das mais fortes, aliada á sua fraca visibilidade com os óculos que possuía na época, e claro a sua fraca, muito fraca experiência como condutor.
Foi então a risota geral dentro do carro, e felizmente que não se verificaram danos pessoais, ou mesmo materiais, tanto para o carro como para o deposito.
Chegados a Lisboa, com entrada pela zona do Marques de Pombal, e apesar dos constantes avisos do Luis Costa, que seguia na frente, no lugar do pendura, tipo co-piloto, o “Chico Aroles” conseguiu colocar o carro em cima do passeio central da Avenida da Liberdade, no sentido descendente para os Restauradores, perante o espanto dos outros condutores e a nossa gritaria dentro do carro. No entanto ele com a maior das calmas do mundo só dizia para se ter paciência, pois aquela era a terceira faixa de circulação, destinada aos carros mais lentos... efetivamente ele era mesmo muito lento, em muitos aspetos!
Somente já em frente do Cinema São Jorge, e meia avenida andada em cima do passeio, inclusivamente com o cruzamento de outras ruas, conseguiu entender que estava a circular em cima do passeio central da avenida.
Essa foi uma noite de largas emoções, pois embora ele só quisesse andar de carro, nós só queríamos o seu estacionamento para nos sentirmos finalmente totalmente seguros. Foi uma aventura e tanto, que nunca mais terminava e que nunca mais voltamos a repetir, mesmo perante a sua grande insistência, pois se nessa noite nada de grave nos aconteceu, dificilmente volta a acontecer em iguais circunstancias.
Por outro lado o “Chico Aroles”, que até nem era um grande adepto do Sporting, e que acompanhava mais o pessoal pelo espírito de camaradagem do que da clubite, não dispensava uma oportunidade de nos poder acompanhar nas nossas saídas para a farra desportiva e afins.
Um dia acompanhou todo o grupo ao ginásio do Futebol Clube Barreirense, para assistir a um jogo de basquetebol com o Sporting, que na época era juntamente com o Futebol Clube do Porto, o grande time do basquetebol nacional.
Naquela época; as deslocações desportivas ao ginásio sede do Futebol Clube Barreirense, eram, sem duvida nenhuma, um verdadeiro tormento para qualquer equipa, pois as dimensões do recinto de jogo eram menos do que mínimas, para além de que a assistência pressionava durante todo o jogo, como claque aguerrida e apaixonada de forma doentia pelo seu clube, o que acontecia bem em cima dos jogadores. Era uma ambiente terrível, de cortar á faca, tanto para os jogadores como para nós adeptos da equipa visitante.
Nós já estávamos mais ou menos habituados aquele tipo de situação, e procurávamos ficar sempre na varanda lateral, longe das claques organizadas. Conseguir acompanhar o Sporting, naquele pavilhão sempre lotado, era sempre uma primeira vitória.
Esse jogo coincidiu com a época do carnaval, e essa era mais uma razão para se ter atenção redobrada.
Recordo-me como se fosse hoje, que o Sporting estava a perder por 1 ponto, a poucos segundos do final do jogo. Então no ultimo ataque o histórico e saudoso jogador Baganha, fez um magnífico lançamento da zona frontal de fora do garrafão, com o seu estilo muito personalizado, que hoje valeria pelas novas regras 3 pontos, mas que na época mesmo valendo somente 2 pontos, chegou e sobrou para assegurar a vitória ao Sporting por 1 ponto.
Foi então o delírio dos adeptos do Sporting, presentes no pavilhão em; pequeno numero, perante o desanimo e a raiva incontida dos fãs do Barreirense, que eram uma claque bem temida no seu recinto.
Como tal a saída foi tumultuada, e como nesses tempos sempre acontecia, a policia comparecia em pequeno numero e não se metia em nada, normalmente essa situação acabava por dar direito a alguns confrontos entre adeptos.
O “Chico Aroles”, pouco ou nada habituado a estas andanças em território inimigo, quis sair todo lampeiro do pavilhão com o lenço verde e branco enrolado ao pescoço, como se fosse um herói napoleônico depois de uma batalha ganha, e assim quando saiu do pavilhão foi presenteado com uma autentica chuva de ovos podres e farinha sobre a sua cabeça, para além de muitos empurrões e também algumas lambadas á mistura, de tal forma que acabou por obrigar-nos a resgatar a sua fraca figura do meio da multidão enfurecida, foi de tal forma conturbada a sua agitada saída que até os óculos lhe conseguiram partir.
Essa foi a ultima vez em que o “Chico Aroles” nos deu o prazer da sua companhia num evento desportivo fora da casa dos “Leões” em Alvalade.
Sempre que o convidávamos respondia perante a gargalhada geral, que o desporto estava muito violento e perigoso, e não queria morrer novo.
Por se falar em colegas, não posso esquecer que o Azevedo “Azedo”, foi meu colega de classe e sala de aula, no curto período em que freqüentei a 4ª classe primaria no Lavradio, até ao dia do certeiro tinteiro na testa da professora, que deixou o Américo Tomas e o Marcelo Caetano todos “borrados” de tinta.
Era um jovem, filho único, ultra, protegido pela mãe, o que lhe originava muitas limitações em termos de capacidade de liberdade de convívio com os outros jovens da sua geração.
A própria mãe colocava o jovem no ridículo sempre que podia, e claro que a todo o mundo na maior galhofa, pois gritava alto e bom som que o filho só tinha problemas porque era o menino mais lindo da rua. Resultaram dai os nascimentos de alegados inimigos de referencia, sendo que o maior de todos era o Alfredo, que sempre que podia o aterrorizava só para o ver em pânico. Por outro lado aventurava-se em jogar ao perde/ganha nos ‘berlindes’ com perdas extraordinárias para o Pedro “Super” que era um exímio jogador de ‘berlinde’, ou ainda os sacos de cromos que acabava por perder, ao jogar nas escadas do seu prédio á palmadinha.
Pessoalmente não tenho nenhuma aventura com o “Azedo” pois isso seria mesmo um milagre, tal o raio de ação e liberdade da sua vida diária. No entanto tenho realmente algumas boas aventuras passadas com o Pedro “Super”, para além claro de me ter quase afogado, para não o deixar só no meio da correnteza da praia da Barra-a-Barra.
O Pedro era um exímio atleta em desportos velocipedicos e quase sempre com resultados finais incrivelmente nada animadores.
Um dia, um grupo de amigos decidiu deslocar-se a Alhos Vedros, para apanhar pinhões nuns pinheiros que tínhamos previamente verificado estarem cheios de pinhas. Todos nós munidos da sua bicicleta, lá nos dirigimos a uma zona situada junto da estação do caminho de ferro, e perante a alegria total fizemos uma boa recolha geral de pinhas. Na hora do regresso fomos confrontados com um bando de ciganos, que nos ameaçavam com paus e pedras, que entendiam ser aquele um território seu, e dessa forma nada nos dava o direito de ali ir buscar pinhas. Decidimos salvar a nossa pele em vez das pinhas, perante tão numeroso e feroz grupo, e assim deixar tudo para trás, mas o Pedro não quis pensar dessa mesma forma, e decidiu realmente trazer os frutos que tinha apanhado.
Nós após o incentivar a vir, e como assim no entendesse, decidimos salvar a nossa pele perante o numeroso grupo, e dessa forma deixar assim tudo para trás, mas o Pedro não quis pensar da mesma forma, e decidiu realmente arriscar.
Acabou por chegar a casa todo esbaforido, e com vários raios da bicicleta partidos e amaldiçoando o fato de nós o termos abandonado a enfrentar sozinho todo o grupo de ciganos.
Claro que a opção foi totalmente pessoal, de assim ter decidido, e o risco foi por si calculado. Ou melhor; dizendo, um risco não calculado. Bem que se poderia aqui utilizar a máxima de que os cemitérios estão cheios de heróis.
Num outra ocasião realizávamos corridas em volta das vivendas de forma que cada volta era contabilizada em termos de tempo gasto.
Numa das saídas do Pedro para uma volta, e como a sua demora em retornar fosse demasiada, fomos investigar a razão desse fato, tendo descoberto na esquina seguinte, para nosso grande espanto, que tinha tido um acidente, tendo batido contra o painel lateral de uma camioneta que efetuava o transporte de batatas. Estava deitado dentro da carroçaria da viatura com a bicicleta partida no meio do alcatrão da rua, e claro todo o mundo, em volta da camioneta, preocupados com o seu estado físico.
A sua capacidade atlética e desportiva não se ficava por aqui, e um dia o filho do “Frutol” emprestou-lhe a sua bicicleta para uma descida da rua da padaria e da escola primaria, até ao cruzamento do Sporting Lavradiense.
No entanto o filho do “Frutol” esqueceu-se de avisar, ou omitiu de propósito essa situação importante, para não dizer fundamental, de que a viatura não possuía travões, sendo que ele para parar, travava a bicicleta somente com o pé no pneu traseiro.
O Pedro lançou-se ladeira abaixo na maior das velocidades possíveis para uma bicicleta, passou o cruzamento da Rua da Cooperativa Lavradiense, e sempre, sempre a pedalar sem parar, e sem olhar sequer para o transito, passou também da mesma forma o cruzamento seguinte da Rua da sede da SFAL, e quando ia quase a chegar ao inicio do edifício do Sporting Lavradiense, é se deparou com uma carroça carregada de carvão, puxada por uma mula, parada á sua frente. Foi somente naquele instante é que então se apercebeu de que a bicicleta não possuía travões. Como ultimo recuso largou-a então, e atirou-se para um dos mastros das bandeiras do Sporting, que ficavam bem na esquina com a bicicleta a ir parar debaixo da carroça e das patas da mula.
De entre os muitos, e variados amigos, que fui juntando ao longo dos anos no Lavradio, o agora, Major Alfredo, da Brigada de Transito da Guarda Nacional Republicana, era naquela época um dos jovens mais independentes da zona.
O Alfredo vivia com os irmãos em virtude dos pais estarem emigrados na Alemanha, e dessa forma a sua vida era controlada ao mínimo pelo irmão e pela irmã.
Quando todos os anos, se deslocava, para um período de férias junto dos pais, regressava portador de algumas novidades, ora fosse uma bola de futebol adidas, umas botas de futebol modernas, uns tênis de nova marca, estilo ou geração, um disco com os últimos êxitos além fronteiras, ou como aconteceu um ano com um barco insuflável de borracha.
Esse barco acabou por virar autentica celebridade pelas mais variadas ocorrências de que acabou por vir a ser protagonista direto.
Um dia na praia fluvial da Barra-a-Barra, decidimos andar de barco e mergulhar longe da praia, para tal o grupo organizou-se para que alguém ficasse a bordo a fim de assegurar o bom regresso da embarcação.
A figura escolhida foi o Luis Costa, que só posteriormente viemos a tomar conhecimento de que nadava bem como um prego. Ou seja; não sabia dar uma única braçada e muito menos remar.
O resultado foi desastroso!
Acabou por entrar em pânico, mal se viu sozinho no interior do barco, tendo mesmo acabado por perder os remos no meio da corrente, e quando colocado perante o movimento acelerado do barco no meio da corrente, entrou em desespero. Quanto nós mais lhe gritávamos para se acalmar e sentar, mais ele se agitava, tendo estado muito próximo de limite para cair borda fora ou virar mesmo o barco.
Tudo acabou, quando um barco “varino” o resgatou, já bem ao longe, a caminho do Rosarinho, na outra margem do rio, e completamente desesperado, como se fosse um naufrago abandonado numa balsa salva vidas, á largos dias no mar alto, e foi assim que o rebocou até bom porto, como um “gato pingado” perfeitamente paralisado de terror.
O Alfredo nunca negava um pedido a um amigo, e um dia o Valdemiro resolveu ir até á praia com a mulher, os filhos e a sua “santa” sogra, tendo pedido o barco emprestado para proporcionar um passeio fluvial agradável a toda a família.
Esqueceu-se, no entanto, que o barco tinha limite de lotação e peso na tribulação, e como eram para a época, uma família bem anafada o resultado final não foi muito animador, pois quando já se encontravam com a embarcação bem ao longe, já no meio da corrente, a mesma começou a adornar e a meter água, tendo-se gerado o pânico geral a bordo, e não fora a presença previdente de outra embarcação, e a família Valdemiro teria morrido toda ali afogada, na praia da barra-a-barra, pois só mais tarde se constatou que ninguém sabia nadar a bordo da embarcação.
Depois disso o Alfredo tomou providencias e somente emprestava o barco a pessoal com a máxima garantia de segurança e de destreza aquática, para não vir a ser acusado de co-responsável em alguma tragédia naval.
As idas á praia da barra-a-barra também não eram inocentes em termos emocionais, pois no meio de uns bons banhos de rio, de uns jogos de futebol, nunca se podia esperar que não surgisse a oportunidade de poder ter alguns momentos de prazer com alguma jovem transviada, em especial vinda das bandas da Baixa da Banheira, para quem os jovens do Lavradio e do Barreiro eram naqueles tempos considerados um luxo fora do normal. Algo que não encontravam lá pelas bandas do Concelho da Moita.
Foi assim que não poucas vezes tive oportunidade de poder ter alguns momentos de larga intimidade com uma amiga da futura mulher do “Quim Avantajado” que se apaixonou perdidamente por mim, e dedicava horas a deliciar-se comigo debaixo da toalha no meio das dunas, longe dos olhares mais comuns. Nem sei até hoje como foi possível nunca ter acontecido alguma gravidez indesejada, tal a falta de prevenção a que nós nos predispúnhamos no nosso relacionamento intimo.
Jamais eu poderia imaginar que poderia ser o primeiro homem de alguém sem um aviso prévio, assim sem mais nem menos, e logo no meio das dunas de uma praia fluvial. Pior do que isso também eu jamais poderia imaginar que ela sem o mínimo de pudor pudesse ter tido a falta de sigilo para ter divulgado essa situação perante todas as suas amigas. Dessa forma ganhei indiretamente uma, por assim dizer, má fama, e fiquei fora de competição por aquelas bandas, pois era sempre apontado perante as jovens da zona como o primeiro da Cristina.
A Rua era um espaço físico que se estendia um pouco para fora da sua área geográfica própria, chegando ás vivendas do Pimenta e do Ferrari, e claro ás ruas contíguas e onde se compartilhava o espírito algo familiar e de companheirismo.
No primeiro andar do prédio esquinado, fronteiro ao café morava o, para nós muito famoso, Alegria, figura típica pela sua imagem de trabalhador incontinente. O Alegria estava sempre equipado de fato de macaco, seboso de óleo e ferrugem, pois trabalhava numa oficina automóvel, junto da escola velha, situada á entrada do Lavradio.
Que me lembre, apenas o vi uma única vez com outro vestuário, foi num dia de eleições, nos finais dos anos 70, e a diferença era tão grande que até chegamos a pensar que era outra pessoa.
Uma vida agitada e comandada pela esposa, outra figura típica, com um desnível em uma das pernas, o que obrigava á utilização de uma bota com tacão extra para compensar. A “coxa” como foi batizada, não se furtava à ida diária ao café, muito embora o pobre Alegria, sempre chorava a miséria de ordenado com que tinha de viver com a mulher e tentar criar com o mínimo de dignidade os seus dois filhos. A jovem era bem calminha e também muito feiazinha de cara. O rapaz por seu lado era um dos maiores terrores da zona, chegando ao ponto de se lançar de cabeça da varanda do 1º andar para o passeio, para conseguir ir para a rua brincar, isto para além dos inúmeros acidentes que sofreu, devido ás suas brincadeiras fora de nexo, tendo como resultado; nomeadamente com a cabeça partida varias vezes.
Recordo duas das suas maiores aventuras, como algo incrível de acontecer a jovens normais.
Assim, a ex-fabrica do sal tinha praticamente desde a época da revolução de 74, as suas instalações abandonadas e a saque. A zona da báscula era uma atração especial, devido á cave que se formava sob o tabuleiro, no entanto devido ao abandono encontrava-se cheia de água e lama, mas não deixava por isso de ser ponto obrigatório, das brincadeiras de alguns dos mais jovens aventureiros, invariavelmente dirigidos pelo Pedro Núncio. Numa dessas incursões na cave da báscula, não se sabe bem como, o Alegria “Junior”, acabou por cair dentro de água e lama, o resultado quando de lá conseguiu sair era como se tivesse sido recuperado de dentro de um pântano, para além de que o seu cheiro era nauseabundo, com um fedor a podre que chegava a quilômetros de distancia, nós que estávamos no café deliramos com o tratamento dado pela sua mãe, no entanto era um jovens que parecia feito de borracha, pois quanto mais apanhava, mais apetite tinha para entrar em novas e irrefletidas aventuras, e não se importava muito com os repetidos castigos aplicados.
Assim imaginaram, um dia, construir um túnel por debaixo da rua, com inicio junto da marquise da casa do Sr. Carlos Santos, e que segundo os projetos iria terminar do outro lado da rua, já muito próximo da porta de entrada do café.
As escavações tiveram o seu inicio, e seguiam já em muito bom ritmo, quando alguém se apercebeu de que estava a nascer um imenso monte de terra e entulhos diversos, que se podia observar junto da entrada de um túnel.
Na verdade eles só pararam a construção porque foram impossibilitados de prosseguir devido ao fato de terem encontrado na sua frente as manilhas de betão do abastecimento de água e recolha dos esgotos que se situavam bem no meio da rua.
Qualquer um deles estava num estado lastimoso, e só com uma grande barrela foi possível recuperar o Pedro Núncio o Alegria e os seus diversos ajudantes, pois o cheiro e a lama que cobria os seus corpos e vestuário era incrível.
Ali bem junto do inicio desta aventura subterrânea juvenil, morava o Sr. Carlos Santos, que era uma alma boa. Homem trabalhador do ramo de hotelaria, pai do Nelson “Fome”.
O Sr. Carlos tinha vindo de Angola, fugido da independência daquela ex-colonia portuguesa, com a família, e habituado a uma vida de padrão de classe media em África, teve que se ambientar á sua nova realidade na metrópole.
Para alem de Sportinguista convicto, era alguém que nos merecia muita estima, pois era um cidadão calmo, bom conversador e ainda por cima não era nada mau jogador de cartas, o que possibilitava uma boa parceria de quando em vez.
A sua amizade como grupo mais jovem da Rua foi assim rápida e durou até à hora da sua morte, tendo-se tornado sempre respeitável e desejada a sua presença.
Depois de muitas colocações em bares e restaurantes, acabou por fazer uma época estival na Costa da Caparica.
Como fossemos visita habitual daquela estância balneária, passamos também a ser seus clientes no restaurante onde trabalhava, e verdade se diga que não poucas vezes ali degustamos um bom frango assado ou umas ótimas sardinhas assadas, com a conta a ser ridiculamente avultada, mas mesmo assim a ser dividida por todos os comensais. Também outras vezes aconteceu que no momento de se pagar, era recusada a entrega da conta, o que nos deixava ainda mais folgados, para permitir a realização de outros gastos extra, especialmente durante os inesquecíveis fins de semana na Costa da Caparica.
Anos mais tarde, estando eu colocado no Ministério do Trabalho, consegui anular uma grave injustiça que iria ser cometida contra ele, pois ao abrigo de um programa ocupacional, pretendiam efetuar a sua colocação para abrir valas e montar estruturas metálicas na preparação dos pavilhões para a feira industrial do Barreiro, a ‘Barrind’, tendo, no entanto; acabado por ser colocado no seu verdadeiro espaço profissional. Na verdade estou convicto de que não fora já a sua idade, algo avançada, e bem que poderia ter tido, um outro tipo de vida, mais ensolarada na metrópole.
Ficamos amigos para toda a vida, e sempre que necessitava de um qualquer, simples favor, ou uma opinião ou conselho sobre este ou aquele documento, quase sempre recorria á minha ajuda, fosse para fazer um simples requerimento ou para contestar alguma outra situação.
Um dos fatos mais curiosos acontecidos comigo na política, teve-o a ele como protagonista.
Assim, num dos comícios realizados no Barreiro com o Partido Popular, ele lá estava no meio da multidão, apenas para me dar um abraço de apoio e amizade. Na primeira vez em que o voltei a encontrar confidenciou-me que havia estado ali porque eu sempre tinha sido frontal e verdadeiro com ele, e dessa forma um seu leal amigo, poderia assim contar com o seu voto, muito embora aquele não fosse o seu partido político de opção, pois se assumia como um social democrata.
Nesse dia chorou ao abraçar-me no salão dos “Franceses”, ao dizer-me que poderia ter tido uma vida tão diferente, ele e a sua família, mas que o destino tudo pode e agora já era tarde para tentar mudar algo no seu destino. Nesse dia fiquei com a idéia que poderia estar doente, tal o tipo de conversa premonitória que efetuou.
Agora, segundo ele; era a hora dos novos, dos novos como eu, e que me desejava tudo de bom como se fosse meu filho...
A mecânica proteção, aos novos, como que passava de geração em geração, ali na nossa Rua, e o apoio e protecionismo como que tinha sempre alguém escolhido para apadrinhar por sua livre iniciativa um dos jovens da geração seguinte á nossa. Eu acabei por não fugir muito a essa regra e para mim alguns jovens tinham uma afeição especial no tratamento. Dessa lista de auto – protecionismo, fazia parte entre outros o José Peleja, a quem desde logo adotamos o nome de guerra de “Cebolinha”, pelas suas naturais parecenças físicas com aquela conhecida e popular figura da banda desenhada, e também desde criança o Pedro Núncio, que se revelava a cada dia, um produto explosivo da natureza, sendo uma criança irreverente e dotada de uma habilidade muito especial para todo o gênero de malandrices e também para o futebol, mas talvez nesse campo por simples deformação familiar.
Nascido no chamado meio de uma geração especial, que apelidamos de os chamados “Putos da nossa Rua”, foi desde sempre ele a tomar a iniciativa de organizar e comandar as mais diversas aventuras infantis, a que todos os restantes se juntavam numa união total, qual exercito bem comandado.
Como grande amigo pessoal dos irmãos, e de certa forma como admirador de algumas das suas façanhas, nunca deixei de modo indireto de apoiar algumas das suas rebeldias, quanto mais não fosse condescendendo na necessária distração familiar e defendendo o seu espírito de algumas ameaças que algumas vezes surgiam de gerações mais velhas.
De entre muitas ocorrências, recordo uma em que a sua rebeldia deu lugar a um bom comportamento e tranqüilidade e que infelizmente outros queriam transformar em injustiça, pois dessa vez não existia a mínima razão de queixa do seu comportamento.
Existia uma época em que as habitações eram entregues aos novos locatários devidamente alcatifadas, e em que os restos das alcatifas acabavam para servir para inúmeras brincadeiras, de entre os quais, após se desfazer a teia aproveitavam-se rolos de fio para servir de guia para lançar papagaios ao vento.
Alguns miúdos mais habilidosos construíam papagaios com canas e papel celofane ou papel de lustre, que posteriormente eram lançados ao vento para delicia de miúdos e graúdos.
Na rua desde há alguns anos que habitavam duas famílias de negros, o que para a época era quase um fenômeno. De um lado o Roberto, ex-saco de treino de boxe de ‘Moamed Ali’, de quem tinha inúmeras recordações entre fotos conjuntas e mesmo alguns troféus, e que era uma pessoa bem respeitada e amiga do seu amigo, nunca ninguém veio a ter o mais mínimo problema com a sua família. Mudando mais tarde para uma vivenda na Vila Chã, passando a ser vizinho do meu bom amigo Luis Simão, local onde acabou por vir a viver a tragédia da morte do filho mais novo por motivos de overdose de droga, situação que estava muito longe de acontecer no Lavradio, onde ninguém tinha a mais leve suspeita dessa situação com o jovem.
Do outro lado da rua, morava outra família, precisamente no prédio do Azevedo, no 2º andar, vivia uma família oriunda de Cabo Verde. Esta tinha como referencias o pai imigrante na Holanda, e que muito raramente se podia ver por aquelas bandas, e uma jovem particularmente bonita, pois que muito embora fosse de raça negra, e pequena na estatura possuía uns olhos verdes deveras maravilhosos para além de um rosto muito bem alinhavado. Compunha ainda a família a mãe que veio a falecer por razões nunca explicadas, anos mais tarde, e um jovem, o outro filho da família que era mesmo o terror da sua casa e das imediações, e que anos mais tarde veio a ter problemas sérios com as autoridades por motivo de furtos.
O jovem Humberto tinha a mania de que era um ser superior, e como praticava artes marciais tentava dessa forma aterrorizar toda a rua com essas suas mistificações.
Eu que não prestava muita atenção a essa historia de artes marciais, e que ainda hoje entendendo que para se combater essa lenga–lenga não existe nada melhor do que ou duas boas mãos para assentar o seu peso no local próprio. Ou então um pé certeiro para acertar num certo local entre as pernas, ou em ultimo recurso um bom revolver carregado e pronto a disparar. Também já nessa época não ligava a esses atributos mais cênicos do que reais.
Daí que ainda recorde perfeitamente esse dia dedicado ás artes marciais, porquanto escutei um imenso barulho de gritos de larga!..., larga!..., vindos da rua e que me levaram a ir á varanda do meu quarto observar o que se passava, e para meu espanto, o alegado lutador de artes marciais estava a destruir um papagaio que o Pedro Núncio e meu vizinho Alexandre bem como outros jovens da sua geração haviam construído.
Acabei por constatar que aquela atitude era apenas por pura diversão, pelo prazer de destruir e tentar assim demonstrar o seu poderio, como alias sempre tentava fazer.
Eu que por varias razões não encarava já muito bem esse jovem, fiquei como que possesso. Perante o meu aviso lançado de cima da varanda, para que se fosse embora, ele apenas se limitava a rir e continuava a destruir, rindo em ar de puro gozo para com todos os presentes, e ninguém em seu redor fazia nada, absolutamente nada, como se ele fosse um ser superior e intocável.
Lembro também que em determinado momento me disse lá para cima para a varanda onde eu estava:
“... pois tu estas ai preso em casa, na varanda, e eu é que mando aqui!”
Eu se já estava bravo com ele, ainda pior fiquei, com a agravante de que ele não tinha já idade para se meter com os “Putos da Rua”, sendo que teria ai uns 7 ou 8 anos a mais do que todos eles que o rodeavam.
Não sei como aquilo aconteceu, no entanto eu inconscientemente qual alpinista que no fundo já era nessa época, saltei a vedação da varanda, aproveitei o umbral superior do R/ch, da casa do Valdemiro, e saltei do 1º andar para o passeio, e quando o “negro” menos esperava, e perante a surpresa geral de todos os presentes, eu agarrei o famoso lutador... e o afastei dos jovens. De imediato começou aos saltinhos e a fazer os habituais gritinhos de lutador á minha frente, mais parecia um gato gritando Hu!..., Há!..., Fu!..., Xu!..., etc..., e outras ladainhas e gesticulando com as mãos, eu no entanto vinha cego de raiva e ódio, e como até ao dia de hoje nunca gostei de ameaças, sejam elas verbais ou mais leais de mãos limpas ou mesmo com armas, e tenho como reação imediata avançar para o autor da provocação, perdendo normalmente a cabeça e a noção da violência utilizada, mais uma vez nesse dia assim procedi e colocado perante aquela autentica “macacada” do “kong-fu”, avancei de imediato para cima dele, dizendo-lhe:
“... pois já te vou dar o “kong-fu” no cú meu macacão!”
Acabei por o conseguir agarrar e; reconheço hoje que deveras me excedi, pois desatei ao soco e ao pontapé por tudo quanto era sitio do seu corpo. Acabou por cair no chão a poder de pontapé, soco e chapada, mais parecia um saco de batatas, e nem me recordo o quanto e como lhe dei, lembro que fui descarregando como sempre faço tudo o que posso, e que estava no meu intimo contra a pessoa em questão.
Todos os jovens estavam mudos e quedos a assistir, e do que ainda recordo nessa situação foi de estar a bater com a cabeça dele numa tampa metálica do saneamento no meio da rua, e da chegada aos gritos apressados do Lê e do Cabanas que me conseguiram segurar e afastar do corpo imóvel e inanimado do tipo e de me chamarem louco. O Lê com aquele seu ar malandro me dizia:
“... mas tu queres mesmo matar o ‘macaco’ não é?!”
O Cabanas estava branco, perante o estado lastimável da criatura, e finalmente agarrou no tipo e o arrastou lá para as bandas do prédio dele.
Desde esse dia resultaram duas situações para mim e para toda a rua; para mim nasceu durante algum tempo o constante medo; de que a malta da etnia “negra”, se junta-se para me tentar fazer pagar pela sova dada no seu elemento, e por outro lado o “negro” Humberto nunca mais ameaçou ninguém na rua, tendo inclusivamente acabado com as “macacadas” da arte marcial, de que até aos dias de hoje não observei grande utilidade, tirando alguns bons filme do saudoso Bruce Lee, pois que até anos mais tarde tive a oportunidade de encontrar um novo amante dessa alegada arte, desta feita em Itália, que me ameaçou e a quem eu com a maior dos á vontades encostei a até hoje minha companheira inseparável de viagem ao pescoço, e se ele não tivesse desistido de continuar a ser ameaçador, pois garanto que nesse dia a faca de caça submarina teria feito o seu trabalho, tal como se faz ás galinhas, ainda mais que a fronteira com a Suíça estava a dois passos, e quem se iria importar com um simples ladrão vagabundo de pescoço cortado.
Mas a versatilidade do Pedro Núncio é algo incrível até aos dias de hoje. Deve ser o jovem nascido e criado naquela rua, recordista de vezes em que partiu a cabeça, e sempre por causa de brincadeiras megalômanas, como por exemplo; andar a fazer malabarismos nas estruturas dos tetos da ex-fabrica do sal, saltar de alturas bem apreciáveis, lutas com outros bandos de jovens rivais, e mais um sem numero de acontecimentos, onde se pode incluir, á muito poucos anos conseguir partir a cana do nariz, durante um jogo de futebol, e mesmo assim acabar o jogo em campo, tamponando as narinas com algodão.
No entanto este jovem soube crescer rápido em responsabilidades e relativamente cedo se tornou pai e chefe de família.
Para além de muitas aventuras que tive a oportunidade de presenciar ou tomar conhecimento posterior por relatos verbais de observadores, destaco um fim de semana alargado na Costa da Caparica, em que decidimos chegar na véspera de todo o restante grupo, e partimos no final da tarde de uma sexta-feira, no entanto a deslocação foi mal organizada em termos de horário, e também de trajeto, uma vez que se deveria ter feito a travessia para Cacilhas e daí apanhar um autocarro para a Costa da Caparica. Mas decidimos ir diretos para a Praça de Espanha em Lisboa, a fim de ali apanhar um autocarro para a Costa da Caparica.
No entanto devido á hora tardia de chegada a Lisboa, já não conseguimos apanhar o ultimo transporte, pelo que fomos obrigados a pernoitar na via publica, aguardando a passagem da noite, para então ás 05.40 horas da manhã, apanhar o primeiro autocarro com destino á praia da Costa.
Foi uma noite memorável para o Pedro Núncio, acho que até hoje jamais deve ter esquecido essa aventura, e embora habituado a; por certo muitas aventuras, não conseguiu dormir na via publica, em virtude do seu constante receio de ser atacado por uma das muitas ratazanas, que mais pareciam coelhos devido ao seu avantajado tamanho, que se podiam observar a circular livremente por toda a zona.
Eu estendi a minha esteira e o saco cama na calçada e dormi o sono dos justos como normalmente acontece. Recordo no entanto, as inúmeras vezes em que fui acordado pelo Pedro, gritando como podes dormir aqui com toda esta bicharada em volta; “olha ali aquela enorme junto do passeio!”.
Nessa noite não expliquei ao Pedro que a razão do meu á vontade em dormir no passeio com algumas ratazanas a passear na rua se prendia unicamente com o fato de que existindo barracas de alimentação próximas, os ratos claro que preferem atacar comida imóvel e indefesa, que lhes dá muito menos trabalho a conquistar do que a atacar o homem, pois tem receio da sua reação, e só nos atacariam se estivessem realmente muito desesperadas com fome, o que não era o caso, assim com tanta comida ali próxima disponível.
No entanto reconheço que nas minhas muitas aventuras estrada fora, e algumas noites de sono dormidas na via publica, um pouco por toda a Europa, nunca tinha presenciado umas ratazanas tão grandes e também tão destemidas, pois mesmo vendo ali a nossa presença, atravessavam a estrada sem medo algum.
Pela madrugada lá acabamos por apanhar o transporte para a Costa, e montar a tenda no respectivo parque de campismo, mas quando o Pedro imaginava que iria poder dormir, tal não aconteceu e fomos diretos para a praia, onde também recordo o delicioso espetáculo que decidiu dar, ao começar a circular pela praia fazendo o pino, tanto pelo areal como pelas pedras que compõem o apoio de estabilização do paredão, o Pedro Núncio, nesse dia, mesmo cheio de sono, mais parecia um artista de circo, e atraiu largo publico para admirar a sua destreza sobre s mãos.
A Costa era para nós um local mítico, e muito em especial no período fora da época alta, nomeadamente em Setembro e Outubro.
Adorávamos ficar por ali acampados, ora fosse na Orbitur, ou mesmo no camping ilegal da “Ti Maria”, que apenas dava para dormir e tomar banho, pois como não dispunha de arvores, um dia dentro da tenda o sol não era recomendável para ninguém uma vez que a temperatura deveria corresponder a muitas dezenas de graus e claro a uma certidão de óbito certa por desidratação.
Poder cheirar a terra molhada, desfrutar dos salões de jogos quase vazios, jogar á bola no extenso areal quase deserto, conviver com algumas miúdas lisboetas giras e descomprometidas que por ali aportavam, devido sobretudo as casas de familiares que eram disponibilizadas para os fim de semana. As garotas lisboetas adoravam nessa época trocar a zona da Linha do Estoril e Cascais, pela Costa. Nós próprios achávamos a linha um local que reputávamos de beco dos “betinhos”, e praias a que não achávamos qualidade nenhuma, e para onde nunca fomos, e claro que o convívio entre todo o grupo de amigos era bem mais importante de realizar num local que nos desse prazer em estar.
Numa dessas deslocações, reunimos um grupo bem mais numeroso do que o habitual e com alguns elementos que nunca nos costumavam acompanhar, de que se destaca entre outros, pelo ocorrido o Nelson Lopes, que foi apelidado nessa ocasião de “Fome” devido a essa deslocação e aos fatos ocorridos no próprio acampamento.
Esta aventura começou logo torta desde o seu inicio, com a chegada de todo o grupo á Costa a uma hora imprópria para se ter acesso ao camping. Ficou então decidido o acampamento de todo o pessoal na mata contígua ao parque de campismo da Orbitur.
Com muito pouca iluminação, o local da clareira ficava metido dentro de um denso arvoredo, foi logo razão para alguma celeuma para alguns dos participantes, mais atemorizados com o ambiente isolado do local.
Para ajudar em toda a seqüência, no preciso momento da montagem das tendas, desabou um intenso temporal que levou á montagem apressada e mal ordenada das tendas, com algumas delas a ficarem mesmo inundadas.
A noite prometia ainda muitas aventuras, com o surgimento primeiro de um grupo de 2 vadios que foram prontamente rechaçados e posteriormente de uma matilha de cães vadios e esfomeados. Mais tarde deu-se a adoção imediata por parte do grupo, de um cão de grande porte, que por ali apareceu perdido, e que acabou por acompanhar o grupo durante todo o fim de semana, tendo inclusivamente entrado para o parque de campismo.
Colocados perante a não autorização de animais no parque de campismo, quando questionados pelos porteiros sobre quem era realmente o responsável do cão, em conjunto todos se recusaram a assumir, no entanto para risota geral foi dito que; tínhamos duvidas de que alguém colocasse a mão no cão para não o deixar entrar ou pôr fora, pois que por certo seria comido por ele na hora. Acabou obviamente por entrar no parque, e por ficar sempre residente no nosso acampamento e dali no saia, rosnando a todos quantos por ali se aproximavam, como se fosse um fiel guarda.
A noite foi demolidora no acampamento improvisado, com ruídos constantes de indivíduos a circular nas imediações, pelo meio da mata e inclusive algumas ameaças verbais gritadas de alguma distancia para as tendas.
Mal o dia despontou o acampamento foi levantado e desde logo montada paragem na recepção do parque para se entrar e montar as tendas e tentar dormir um pouco para recuperar da noite terrifica.
Finalmente acampados no camping da Orbitur da Costa, com as diversas tendas em circulo que nem um acampamento índio, onde só faltava o fogo no centro com o caldeirão em cima, e com o enorme cão como guarda, todos pensamos que tudo iria começar a correr pelo melhor, mas estávamos totalmente enganados.
A vida em comunidade obriga a certos referenciais, que para quem esta familiarizado acabam por ser fáceis, mas para quem se estréia, para além da novidade são bastante estranhos, assim o simples fato de todo o mundo estar a viver em comunidade não autoriza que se possa abusar das coisas de outrem, sem o mínimo de consentimento, informação ou respeito, e a partilha das compras alimentícias ou se faz em conjunto, ou então cada grupo gere a seu belo prazer aquilo que comprou, e obviamente o que é seu, como foi o que aconteceu.
A partilha comum obriga a uma constante obrigação de informar para não se deixarem esgotar os stoks, bem como não criar desconfianças entre o grupo que contribui por igual.
Todo o grupo, depois de devidamente instalado foi por sua vez ás compras, mas decidiram que cada tenda faria a sua gestão do espaço e claro do stok adquirido, tendo inclusivamente as compras sido feitas, nos mais variados locais e com as mais diversas escolhas e quantidades, de acordo com os gostos e opções de cada um, e de cada grupo.
Sabe-se que existem produtos que num local como uma tenda de campismo sem frigorífico, á partida são perecíveis, após algum tempo de abertura, e que ao serem abertos devem ser consumidos no mais breve espaço de tempo possível, como os yogurtes, salsichas e outros enlatados. Por outro lado num acampamento normal o pão e bebidas variadas não podem faltar, mas isto não significa que: quem compra, se não consome na hora, veja os seus produtos desaparecerem do dia para a noite, assim sem mais explicação.
O Joaquim Núncio, “Quim-zé” abasteceu a sua tenda, com uma boa quantidade de tudo quanto gostaria de degustar, e como estivesse com alguma fome resolveu abrir uma lata de salsichas e comer umas duas ou três com pão, guardando o restante para mais tarde.
Decidiu ir tomar banho e mudar de roupa, e neste meio tempo, viemos a confirmar mais tarde, que o Nelson que ainda não se tinha preocupado em ir fazer as suas compras, decidiu fazer um lanche de salsichas á conta do “Quim-zé”, ou seja dos mantimentos alheios.
Com pão daqui, refrigerante dali, e as salsichas do “Quim-Zé” acabou por fazer um belo de um lanche beneficente.
Acabou por não dizer nada a ninguém sobre o seu auto-abastecimento. Devido somente a esse pormenor conseguiu lançar a grande confusão. Essa confusão teve lugar no regresso de alguns elementos, que foram constatando a falta de alguma coisa, uma coca-cola aqui, pão ali, e o assalto ás salsichas do “Quim” foi o mais notado. Todo o mundo brincou que deveria ter sido o cão que tinha resolvido lanchar, o que até estava certo para pagar o seu trabalho de guarda, agora ninguém conseguia entender como tinha andado a escolher por cada tenda um produto, e até aberto umas ‘coca-colas’. Claro que só podia ser uma fabula!...
A brincadeira ficou mesmo por ai, pois o acampamento virou rebelião de imediato, perante gritos e insultos entre os componentes do grupo que se iam acusando mutuamente, e para os novos elementos que não estavam muito habituados a este nível de convivência a situação ainda foi pior.
A segurança do parque chegou a intervir para tentar serenar os ânimos, mas já nada haveria a fazer, pois que após se ter descoberto quem tinha sido o autor do lanche á conta dos outros, a guerra campal estalou mesmo, com a violência a surgir, chegando-se mesmo a vias de fato.
Recordo que não se sabe bem como, se formaram dois grupos, e que todo o mundo entrou em confronto com alguém. O “Quim-zé” deu um soco no Nelson “Fome” que este ao tombar, melhor dizendo ao voar, acabou por derrubar totalmente a tenda de alguém, e tudo isto por se ter comprovar a origem do mistério do desaparecimento dos alimentos.
O confronto físico ainda durou algum tempo, e o que deveria ser um acampamento de amigos, acabou por virar um conjunto de tendas de quase desconhecidos.
A beleza desse fim de semana ficou assim comprometida de modo total, com a pior das divisões, e durante os restantes dias, podiam ser encontrados grupinhos ou na praia ou nos restaurantes ou em outros locais, mas ninguém falava com ninguém.
Pela vida fora, até aos dias de hoje, muitos desses elementos nunca mais se voltaram a falar, e sempre que se fala em Nelson Lopes, surge sempre o apelido “Fome”, bem como a nossa memória fica sempre indelevelmente marcada com a importância que a nossa geração dava ao abuso de confiança, que ninguém admitia de forma alguma.
Por outro lado. A ironia das ironias, e alvo de piadas e risota entre nós, ficou como a:
“Historia das salsichas do ‘Fome’ na Costa!”
Esta historia vai morrer com cada um de nós um dia, mas até lá faz parte integrante do nosso espolio histórico pessoal.
Á poucos dias o “Quim-Zé”, via internet, disse-me que tinha encontrado o Nelson “Fome” e que até esteve para lhe dar os sentimentos pela morte do pai, mas depois; veio-lhe á lembrança as salsichas, e nem sabia como ele iria reagir, se ele lhe tivesse dirigido a palavra.
Achei piada, e nesse momento até me lembrei de uma brincadeira que seria muito interessante, pois que eu saiba, e se ainda estamos felizmente todos vivos, até que seria engraçado reunir novamente todo o grupo para um fim de semana, de preferência na Costa da Caparica ou noutro local, para fazerem-se as pazes, e porque não comprar entre todos os mantimentos, para fazer um bom jantar, com ou sem salsichas...
Com tudo isto seria lógico e fácil perguntarem:
“Mas afinal onde vão morar os nossos afetos, os nossos agrados, o nosso jeito de lembrar?”
A minha resposta mais imediata seria pegar num pensamento resumido de Alcines Carneiro, que responde a isso da seguinte forma:
“Viver de lembranças é morrer de saudades!”
Realmente; todo o lugar e tempo, guarda nos seus interiores os seus encantos, como um tempo de origem, e a Costa da Caparica não foge a esta máxima, e mesmo podendo morrer de saudades, é bom ter o que lembrar, porque normalmente só queremos lembrar as coisas boas da vida.
Pois eu guardo na minha memória, apesar de todos os acontecimentos negativos daquele fim de semana, uma saudade muito grande desses tempos, que jamais poderemos voltar a viver com igual intensidade e loucura saudável.
Toda a zona da Costa da Caparica era para nós um mundo a viver e a descobrir em termos de afetos. Toda a extensão da linha de comboio até á Fonte da Telha era para nós um mundo a capitalizar, muitas vezes com custos para além do que normalmente se convencionou apelidar de razoável.
Numa das muitas deslocações, o numero de tendas a ocupar era deveras inferior aos participantes, mas como fosse um simples fim de semana, e partindo do principio que em algumas noites algumas tendas, estariam abaixo da sua lotação máxima, uma vez que os seus ocupantes poderiam pernoitar noutros locais, todos os participantes nesta deslocação deveriam ter lugar.
O elemento mais aventureiro em termos de participação, e sempre sem tenda era o Lisboa, que todas as vezes que decidiu nos acompanhar nunca tinha tenda própria para poder pernoitar, mas nem mesmo assim deixou de nos acompanhar, e lá acabava por solucionar o seu problema de alojamento das formas mais incríveis que se possa imaginar.
Desta feita, na primeira noite, passada no areal junto ao terminal de comboios, na Fonte da Telha, resolveu a questão estendendo uma toalha á porta de uma das tendas. Pura e simplesmente embrulhar-se em jornais de folhas grandes como o semanário “Expresso” e o jornal desportivo a “Bola”, que nessa época tinham folhas bem grandes, num formato maior do que os outros jornais. Colocou a cabeça no interior da tenda e assim ficou abrigado, para dormir plenamente toda a noite.
A grande proximidade do mar, conjugada com a noite, originava um abaixamento da temperatura e á normal queda de umidade do tipo cacimba.
O Lisboa dormiu impecavelmente enroscado, e no dia seguinte assim que os primeiros raios de sol começaram a bater em cima das folhas de jornal, logo despertou e resolveu ir esperar o restante pessoal, sentado no bar que ficava logo ali ao lado do terminal.
Quando acordamos, e desmontamos as tendas logo fomos ter com ele, e ai foi o delírio total. Todo o mundo que passava no bar olhava o Lisboa com bastante curiosidade pelo simples fato de que podia ler algumas noticias nas suas costas e mesmo no rosto.
Com a umidade a tinta das paginas dos periódicos tinha passado diretamente para a sua pele e ele mais parecia um jornal vivo, podíamos ler noticias desportivas completas, e também a primeira pagina do Expresso nas suas costas, e em grandes partes do corpo.
Era o delírio total, e a risota geral, ainda aumentada perante a sua cara de espanto, sem saber qual a razão porque estavam a rir de si. Claro que o seu mau humor logo acabou por surgir.
O Lisboa era um das figuras típicas da zona e sempre pensamos que devido ás suas constantes e repetidas mudanças de humor, que por certo teria algum problema de retardo mental, devido também ao seu temperamento instável e modo de pensar e agir. Alguns dos seus pensamentos e ações, eram o espelho, dessa sua mesma forma estranha de estar na vida.
O seu maior sonho declarado aos sete ventos era na realidade um fetiche de índole sexual. Conseguir estar com 2 mulheres em termos sexuais ao mesmo tempo, e segundo ele acabou por confidenciar anos mais tarde, acabou mesmo por conseguir concretizar esse sonho em troca de uns escudos, na conhecida casa da massagista da Recosta. Esta casa que até á pouco tempo ainda funcionava em pleno, ficava situada num famoso 3º andar, com a placa de massagista colocada na varanda, mas que claro se dedicava a outras especialidades e atividades mais intimas. Era uma casa segura, sem problemas de funcionamento e segurança, uma vez que nessa época era protegida por um dos graduados da Policia de Segurança Publica do Barreiro, que protegia a madame em troca provavelmente de uns favores das meninas.
Não poucas vezes, nessa época gloriosa, víamos uma viatura da PSP estacionada na zona e alguns policiais a entrar ou sair do edifício, e como ali não funcionava nenhuma esquadra ou departamento da policia, era obvio que a Madame estava a trabalhar em pleno. A Madame a quem carinhosamente chamavam de madrinha, morava lá com 2 trabalhadoras, e as restantes massagistas... oriundas da cidade de Lisboa, surgiam no salão diariamente, para delírio da imensa clientela.
Tinha muito bom gosto esta Madame, pois tinha mulheres loiras, pretas, morenas, brancas e até mesmo uma “bimbalhona” com sotaque do Norte que era sem duvida a mais interessante.
Outro dos grandes motivos de prazer para o Lisboa era o Bingo, e esse fato acabou por contribuir para arruinar a sua vida profissional e pessoal que estava minimamente organizada. Segundo ele dizia era a razoavelmente remunerado e vivia com a mãe, portanto menos encargos, mas a partir de certa época da sua vida começou a gastar o que tinha e não tinha em jogo nos bingos, na cidade de Lisboa e também da margem Sul.
Acabou por aceitar receber uma compensação para deixar o emprego, e acabou por destruir todo esse dinheiro em meia dúzia de meses, em especial nos bingos e casas de prostituição.
A vida do Lisboa ficou depois condicionada a subsídios, e a trabalhos de ocasião, deixou de morar no Lavradio, sendo as ultimas referencia que conheço sobre o seu destino a sua residência no Vale da Amoreira, bairro problemático na zona da Baixa da Banheira.
Outras figuras míticas tornavam a zona um espelho da sociedade real, de um Portugal especial daquela época, uma dessas figuras era o César, que embora membro de uma geração mais velha, acompanhou toda a nossa juventude,desde logo marcada pelas suas inúmeras historias e vigarices.
A sua vida foi um amontoado de aventuras na nobre arte de viver de expedientes e de saber enganar o próximo.
A primeira recordação que tenho do César, esta ligada á sua vida militar, e com a sua patente. Na verdade ele não passava de um mero básico, mas que fazia questão de se abrilhantar com o posto de Capitão, e para tal nem se esquecia de colocar umas divisas na farda quando se deslocava a casa para passar um fim de semana. Invariavelmente esses fins de semana não acabavam muito bem, pois em vez de regressar no domingo ao quartel estendia a sua estadia até quarta ou quinta feira, ou mesmo por toda a semana, e o regresso era quase sempre feito por meio da visita da Policia Militar que o apanhava a passear pelo Lavradio, ou no café a jogar ás cartas.
Para não ficar mal visto, assim que via o jipe da PM, disfarçava e dizia para toda a malta presente:
“Pronto, meus amigos! Vou ter que me ausentar mais uma vez. Já ai esta o meu motorista e o meu aspirante que me vieram buscar, para me escoltar. As obrigações esperam-me!”
Normalmente os PM, lá condescendiam em não dar mau aspecto, e aguardavam a sua ida a casa para vestir a farda e buscar o saco com a restante roupa. Claro que já sabíamos que durante algumas semanas ninguém iria ver por ali o César, que teria muitas obrigações para cumprir na prisão militar, para pagar mais uma refração. A sua vida militar devia ter durado cerca do dobro do que seria normal ter que cumprir, devido aos muitos castigos com que acabou por ser premiado.
Quando finalmente regressou da vida militar, a sua vida não se alterou muito e continuou a ser feita de expedientes, mas sempre com a maior das posturas em termos de imagem.
Emprestar, dar, dinheiro ao César era o caminho mais rápido para não mais o recuperar, para alem de que tudo em que o César se metia, em termos de negócios, só podia vir a dar buraco, ou uma imensa cratera.
Dos muitos episódios do César, que recordo com muita clareza é de uma noite de temporal, em que após um jogo de cartas, e umas quantas picardias, conseguimos colocar o César á pancada, no meio do lamaçal existente no caminho barrento por detrás do café, precisamente com o outro César, o “Gaguinchas”.
Foi uma cena hilariante, pois como a chuva era tanta, e as poças de água tinham virado autênticos lamaçais, aliado á pouca luminosidade do local e também á grande bebedeira que tinham, acabavam por cair sem parar, mais vezes por sua iniciativa do que em virtude do contato físico direto de um com o outro.
Acabamos por decidir terminar como show de luta livre no meio da lama, já a noite ia bem avançada na hora, e após os separar, e deixar cada um junto á porta do seu edifício, pois mesmo separados ainda gritavam impropérios um ao outro.
No dia seguinte os efeitos do show eram bem visíveis em cada um deles com alguns arranhões, escoriações ligeiras a nível facial e o mais notório era o fato década um ter um globo ocular bem negro.
Falta referir que o artífice central desta brincadeira foi o Julio, que foi dizendo a um e a outro, coisas que alegava um teria dito do outro. Os ânimos foram aquecendo, até ao desenvolvimento final no meio do lamaçal, perante a numerosa e animada assistência.
Verdade se diga que o César tinha uma característica deveras interessante, pois conseguia inventar dinheiro fosse de que forma fosse, ou em sua substituição forma de pagamento para as suas mais diversas aventuras.
Nas primeiras tentativas, argumentava com o empréstimo de dinheiro, digo empresta’dado’ da vitima escolhida, e depois arranjava esquemas maquiavélicos, não medindo recursos e meios para atingir os seus fins.
Como conseguia arranjar algumas colocações profissionais, ainda hoje é um autentico mistério, pois que na primeira oportunidade estava fora. Tentava ajudar em termos de comercio, mas logo que algum dinheiro lhe passava diretamente pela mão, ponto! Acabavam-se os compromissos.
Foi assim com a Mini dos jornais na Avª J. J. Fernandes, com o Luis no leite e também com as ‘Mijonas’ no café.
Retirando estas situações, era um verdadeiro perigo confiar algo á guarda do César, ou ao seu alcance, com liberdade de movimentação.
Os cunhados, os Mota, futebolistas profissionais, depois de terem sido formados no Sporting, e serem colocados a rodar em alguns clubes do continente, foram jogar para a Ilha da Madeira, tendo deixado a casa totalmente montada em Setúbal, á guarda da sogra. O César conseguiu uma copia da chave e imagine-se, conseguiu nada mais, nada menos, do que vender todo o recheio de uma das casas, desde carpetes, móveis, no fundo tudo, só restando no final, as paredes do apartamento.
Quando o cunhado regressou ia morrendo ao entrar em casa e deparar só com as paredes, contaram que nem o tapete da porta da entrada escapou.
Numa outra ocasião, ficou a dormir em casa dos pais do “Chicha”, seus tios e primo. Aproveitou o sono pesado, e num abrir e fechar de olhos retirou o relógio de corda, prenda do avo.
No dia seguinte, procedeu à sua venda, na ourivesaria, fronteira ao Sporting Lavradiense. Pouco tempo depois, o “Chicha” deu por falta do relógio, e deduziu desde logo o que tinha acontecido. Após uma busca em todos os ourives e relojoeiros das redondezas acabaram por encontrar o relógio exposto na montra, já para venda. A única solução foi voltar a comprar o relógio.
Por falar em relógios, o seu pai, pessoa muito honrada e de estima, trabalhava com encaixilharia de quadros em madeira. Fez alguns trabalhos inclusivamente para os meus pais, e numa das suas idas para entregar um trabalho, contou que um relógio de parede de muita estima, tinha desaparecido da sua casa misteriosamente. O pai tinha toda a vergonha do mundo de assumir diretamente quem tinha sido o mentor do mistério do relógio de parede, mas claro que sabia muito bem quem tinha lá em casa capaz de realizar esse fenômeno.
Os seus expedientes eram por vezes magistrais; deslocava-se a uma, qualquer, conhecida casa de alterne e conseguia fazer-se passar por um conhecido futebolista, acabava por ter algumas benesses ele e claro também os seus acompanhantes.
Quase sempre os seus companheiros inseparáveis nestas aventuras de alterne, eram o Luis e o Luis Costa e conseguia muitas vezes chegava ao ponto de conseguir ir até ao privado com alguma das pequenas mais incautas.
Idas com ele a um restaurante, eram uma verdadeira aventura para a carteira dos acompanhantes, pois solicitava tudo do bom e do melhor como se fosse ele a pagar, ou no mínimo a participar conjuntamente. No entanto na hora de pagar a conta, invariavelmente desaparecia, não sem antes chegar ao desplante de ser ele próprio a pedir a conta o empregado, para dessa forma, fazer crer para a geral que era ele quem iria pagar a despesa.
Mesmo assim, e, sobretudo, pelo seu a vontade, o César não se escusava de estar presente em todas as deslocações e iniciativas em que pudesse, fosse qual fosse o destino e o potencial final da despesa.
O César é assim visto por mim como um ser que reputo de ‘oleagenoso’, uma substancia etérea e onipresente, detectável nas ondas do mar ou no tilintar dos metais, a sua musicalidade era muito mais do que som e movimento, imagem, tato e ritmo, era mesmo sinônimo de; uma certa forma de viver a vida.
Mas outras figuras da zona construíam também um mundo muito próprio que vivia de ganhos e expedientes ocasionais, e de todos esses no posso esquecer de forma alguma o Manelito, que muito embora fosse um ótimo carpinteiro, não conseguia fixar-se num local certo em termos de emprego. Depois, ao longo dos anos, as companhias que foi arranjando, e um desmiolar total da sua vida, acabaram por o conduzir a um consumo desmedido de drogas, que por sua vez consumiram as suas capacidades, e nos últimos tempos não passava de um autentico farrapo humano.
Outra figura típica, esta importada da Baixa da Banheira era o “Facadas” que para além de exímio jogador de cartas, onde acabou por ganhar a alcunha, uma vez que sempre que o jogo não se lhe apresentava favorável, ele repetia: “Mas que facada!” conseguia ter a importante missão de nos conseguir, quase diariamente, adquiria os bilhetes para o cinema, a troco de entre todos se lhe pagar o seu bilhete.
E por se falar em figuras de certa forma, com expedientes bem interessantes, também no podia esquecer aquele que foi durante algum tempo o “papa bilhetes” de cinema. O Pina, hoje um ilustre comerciante na zona do Alto do Seixalinho no Barreiro, tinha o costume de encomendar o seu bilhete para o cinema conjuntamente com os nossos, mas na hora de pagar, invariavelmente nunca tinha o dinheiro. Um dia eu próprio, decidi acabar com essa “chulice”, e quando chegou a hora de trocar os bilhetes, e ele mais uma vez não apresentou o dinheiro, eu mesmo o informei de que quem não tinha dinheiro, não tinha vícios, e sem dinheiro não havia mais bilhetes. Quase andamos perto de chegar a vias de fato á porta do cinema da ‘Quimigal’, ‘Casa da Cultura’, e posso confirmar que tinha muito prazer em lhe dar umas “charutadas” naquela carinha de anjo. Mas eu mesmo paguei o bilhete, e o lugar ficou vago, e acabou o nosso problema. O Pina desapareceu de circulação dentro do grupo e nunca mais voltamos a gastar dinheiro com um verdadeiro parasita.
Muitas vezes pela vida fora o voltei a encontrar, e sempre que lhe olhava para a cara, me vinha aquela sensação de estar a ver um “chuleco”, a quem tinha ficado a dever um murro no focinho.
Um “chuleco” agora armado em ourives, que me dizem instalado com loja ali defronte da escola de Condução Barreirense. Será que hoje vende ouro da mesma forma que ia ao cinema? Duvido!
E por falar em ouro, desde logo me vem á memória a “Varina” Zulmira, e o seu marido Carlos, sempre cheios de ouro, fosse nos brincos dela ou nos dedos pejados de anéis de ambos e nos fios pendurados ao peito, que faziam muito gosto em mostrar de forma ostensiva.
As suas vidas eram de trabalho e ao mesmo tempo de alguma penitencia e sacrifício perante o filho mais novo, Jony, que era um dos terrores da vizinhança e que tantos problemas lhes deu ao longo da vida, tendo somente acabado o martírio muito recentemente, quando foi abatido a tiro pela policia, durante a fuga de mais alguma das suas “ratonices”.
Eu pessoalmente conheci a “peça” bem cedo, quando comecei a verificar problemas de vazamento nos contadores de água do prédio onde os meus pais habitavam. Um belo dia, consegui finalmente detectar a origem dessa estranha situação.
Escutei a porta de madeira do local onde se encontrava o contador da água da casa do meu pai a ser aberto, e como na véspera lá tinha estado o funcionário a efetuar a rotineira leitura da contagem mensal, achei desde logo estranho. Consegui observar pelo ralo de segurança da porta o jovem “Jony”; a dar cabo das torneiras de segurança dos contadores da água, por puro ato de vandalismo.
Perante a imagem, no resisti, abri a porta e corri atrás dele, tendo-lhe aplicado uns valentes “lambadões” na cara, culminando com uns 2 ou 3 pontapés no fundo das costas, onde elas mudam de nome, como lição para não mais voltar a mexer onde não devia.
Estávamos na época em 1979, eu tinha toda a minha pujança física de atleta federado, e tive mesmo que a colocar á prova, pois quando menos podia calcular surgiu a “Varina”, com uma faca enorme, gritando que me ia matar por ter batido no seu “Jony”, no seu menino. Até hoje não sei que historia ele contou á mãe, mas que ela estava assustadoramente fera comigo. Disso ninguém duvide.
Talvez na minha vida nunca tenha encontrado uma mulher tão assustadora e ameaçadora da minha integridade física, como naquele dia a “Varina” Zulmira, e também talvez na minha vida eu nunca tenha tido tanta disposição para testar as minhas capacidades físicas. Assim em vez de correr para casa, escapando das garras da “Varina”, decidi dar também uma lição á Zulmira e então, gritei-lhe:
“Pois queres matar-me, anda daí, mostra lá o que vales, vamos ver se me apanhas...”
Eu iniciei o circuito correndo em volta da Rua Grão Vasco, descendo frente á escola primária e retornando á Rua Grão Vasco, pela Rua da antiga farmácia em frente ao tanque de natação. Eram uns mil e poucos metros em cada volta completa, e ao contrario daquilo que eu poderia imaginar, ela estava bem preparada, ou então a sua resistência vinha da raiva incontida que deixava transparecer. Eu de certa forma brincava com a situação, perante a enorme algazarra do pessoal nos passeios e da muita gente que acabou por se juntar, um pouco por todo o lado. Muitos acabaram por vir para as varandas e janelas ver também o que se passava, com um espetáculo deveras curioso, com uma mulher a correr atrás de um jovem, com uma faca na mão, aos gritos.
A brincadeira era de tal forma interessante, que até deixava criar alguma expectativa em relação ao desenlace final, pois eu corria e aumentava a velocidade para lhe diminuir alguma aproximação, mas quando reduzia, e como ela ficava de novo perto a uns 15 ou 20 metros, eu periodicamente aumentava de novo a velocidade, aumentando sempre a distancia quando tal era necessário. Lembro-me que acabamos por dar umas boas 3 ou 4 voltas, completas, ao quarteirão, até que ela ficou esgotada e acabou por desistir ficando sentada em frente ao café, no lancil do passeio, continuando a gritar que me iria matar.
Eu fui para casa, tranqüilo de que nesse dia nada mais poderia acontecer. O “Jony” nunca mais na sua vida estragou contadores de água, pelo menos no numero 17 da Rua Grão Vasco, e durante muito tempo eu tinha muito cuidado, ou evitava mesmo passar na zona da casa da “Varina”.
Reconheço hoje que não era má pessoa, muito pelo contrário, e muito pouco tempo transcorrido desse episodio, até acabamos ficando amigos.
Assim para grande espanto meu, passados pouco mais de três meses, eu estive internado no Hospital de Santa Marta em Lisboa, no Serviço de Cardiologia, e um dia a minha mãe disse-me que ela fazia questão de todos os dias a esperar no seu regresso da visita para lhe perguntar como eu estava, e desejar-me as melhoras.
Ao principio pensei mesmo que seria para ter a certeza e o prazer de ir ao meu funeral, caso alguma coisa de negativo acontecesse. Mais preocupado fiquei quando um dia a minha mãe me perguntou se ela me poderia visitar. Ai eu perante essa noticia, relembrei tudo o que tinha ocorrido pouco tempo antes, mas a minha mãe acabou por me tranqüilizar, e dizer que ela inclusivamente já tinha pedido desculpas de toda a situação, e que o filho só lhe arranjava problemas, e inimizades desnecessárias.
Acabei por aceder na autorização da sua visita, e para meu grande espanto, um dia no horário normal da visita ela lá apareceu, reluzente de ouro e vestida como eu nunca a tinha visto, parecia uma dama de Viana do Castelo em dia de festa da Senhora da Agonia.
Pediu-me desculpas daquele dia em que se comportara como uma mãe mais do que galinha. Acabou por me confessar que o filho era um problema muito difícil que ela tinha mais o marido, e que temia que pudesse vir a ser ainda pior no futuro. Acabou infelizmente por vir a ter toda a razão na sua premonição.
Ficamos amigos, até o dia de hoje. Ela e o marido o Sr. Carlos, são gente muito boa, a que ninguém pode esquecer as suas dádivas de amor, como as suas idas aos hospitais para doar sangue de forma anônima, as caixas de sardinhas ofertadas nos santos populares para festas de rua, e muitas outras situações de puro altroismo, boa vizinhança e companheirismo.
O filho “Jony” esse sim era mesmo o grande problema nas suas vidas, e devido a isso a sua casa mais parecia um “bunker” com grades nas janelas, portas de entrada blindadas. Todo este aparato era motivado por causa do filho, um verdadeiro terror, que com o passar dos anos se tornou um dos maiores ‘gangsters’ da zona, preso várias vezes e sempre em fuga, acabou por ser abatido a tiro pela policia, numa operação para proceder á sua capturar.
E por se falar em terror, é bom analisar também a situação contraria, ou seja, alguém que viveu fora das margens da legalidade e se soube auto-regenerar e hoje é um homem digno da sociedade. Falo entre outros do Carlos Peleja, que por via de algumas amizades menos próprias deu alguns passos errados na sua juventude, chegando ao ponto de ser detido por assalto a uma loja de material desportivo, com tentativa de fuga pela linha do caminho de ferro.
O Carlos, apesar de todas estas suas peripécias na área criminal, sempre foi visto por mim como um amigo, e para todos nós sempre ficou bem idealizado o gosto no sonho da sua regeneração, o que felizmente veio a acontecer.
Mas nem só de maus momentos vivem as recordações sobre o Carlos, também existem muito boas do futebol em que era craque, e outras hilariantes como aquele episodio em que ele e o seu irmão, os dois a bordo de um Austin Mini, acabado de comprar, conseguiram a proeza de na viagem inaugural matar uma vaca. O animal surgiu desgarrado no meio da estrada, e decidiu investir contra o carro e dessa forma o acabou por destruir totalmente com o impacto.
O seu caráter na juventude era propenso a confusões, nomeadamente após a ingestão de álcool, tornava-se incontrolável, e a sua presença em bailes ou festas quando já com algum excesso de álcool no sangue era invariavelmente sinônimo de confusão. Recordo especialmente uma noite em que decidiu armar a maior confusão no baile de carnaval da SFAL, e só a presença de largo contingente policial conseguiu colocar um ponto final em toda a agitação.
Hoje é um bom cidadão, trabalhador e bom chefe de família, deve essa sua situação atual a si próprio, que soube mudar a sua forma de ser e estar na sociedade, para seu próprio bem e para grande alegria dos seus verdadeiros amigos.
Por se falar em amigos, e sempre com claro temor de esquecer algum, tenho que arriscar e falar em alguns que embora longe do nosso contato, á algum tempo, nem por isso deixam de ser considerados, ou votados no lote dos de menor importância.
São amigos que ficam indelevelmente marcados na nossa memória, e de entre esses destaco desde já o Pimenta, pelo que representam para uma geração, como menino das vivendas, filho de pais alegadamente ricos, que brincava com os brinquedos mais caros, mas que convivia com todo o restante pessoal de uma forma totalmente livre de oportunismos ou reservas morais.
Das muitas recordações que contam com a sua presença, respingo as batalhas de pedrada com os jovens da Baixa da Banheira, os jogos de futebol tanto na Quinta do Facho como no campo onde hoje se situa a Urbanização da Quinta dos Loios, a que chamávamos campo dos eucaliptos. Ainda as muitas tardes passadas na sua casa encestando bolas de basket na tabela pregada na parede lateral da garagem, sempre com certo receio de que o enorme cão lobo da Alsacia, negro, se soltasse do seu espaço e nos ataca-se.
Mas as recordações passam ainda pelos jogos de cartas, os torneios de tiro com espingardas de pressão de ar a moedas de 2$50 e 5$00, colocadas quase sempre nos eucaliptos. Torneios disputados depois de mais uma infrutífera caçada aos pardais, sempre com todos os sentidos alerta, para a possibilidade real da chegada do jipe da Guarda Nacional Republicana, e que até hoje não consigo entender se o temor á autoridade era maior responsável do que a nossa falta de habilidade para acertar nos pássaros em movimento.
Mais tarde, anos mais tarde, a memória transporta-me para a construção da míni - discoteca numa das salas da garagem da casa dos seus pais, que acabou por servir de local de encontros com alguma namorada mais rápida, e tantas outras aventuras que fizeram da nossa juventude algo bem mais rico do que o normal que se vivia naquela época.
Mas também aconteciam situações bem hilariantes, e muitas outras estranhas e até bizarras, nas nossas vidas.
Como poderia esquecer os acampamentos na Praia dos Coelhos na Arrabida, em que a lavagem da loiça acabava por cair sempre sob a responsabilidade do mesmo infeliz, a que por ironia de umas cartas bem embaralhadas, acabavam por surgir sempre os malfadados reis, e como o batizamos de ‘Padre’, pois sempre que se realizava o sorteio ele repetia a mesma ladainha:
“... meu deus, como é possível eu ter sempre tanto azar ao jogo!”
Também não posso esquecer o dia em que o meu bom amigo Pimenta, resolveu presentear-me com um cão da raça Basset, vulgarmente conhecido por chouriço.
Este famoso cão, tinha sido da sua namorada daquela época, mais tarde batizada de ‘Viuva Porcina’, e que ela lhe tinha deixado de herança no final do namoro, mas que ele não tinha a mínima intenção de cuidar, e de que a mãe também já tinha perdido a paciência de ter que tratar.
O Pimenta, alegava em sua defesa que não tinha tempo para cuidar do animal, além disso, já tinham um outro cão lá em casa, e como ele se tinha afeiçoado a mim, e ele sabia do meu gosto por animais, alem de que segundo ele dizia o animal não ladrava, e portanto era indicado para poder morar num apartamento, chegando mesmo a argumentar que ocupava pouco espaço, além de ser muito higiênico, e também não comer muito. Para além de tudo isto ele jurava a pés juntos que o cão não ladrava.
Eram no seu entendimento pessoal só vantagens?!
Acabei por ceder na recepção da oferta, e depois de ter convencido os meus pais, mentindo ao dizer que seria só por uma curta temporada a sua estadia, lá instalei o “Boby” em minha casa, perante os olhares intrigantes dos meus pais, sobre as reais qualidades, características e predicados do animal.
Durante o dia o “Boby” até que se comportou maravilhosamente bem, não destruindo nada em casa, foi o mais sociável e higiênico possível, fez amizade facilmente com todo o pessoal da casa, incluindo a tartaruga terrestre africana “Chico” que se passeava livremente por toda a casa dos meus pais. O fato mais curioso, e que até mereceu referencia positiva geral, foi que não ladrou uma única vez durante todo o dia.
Até o meu pai ficou maravilhado com o seu comportamento e acabou brincando que achava que ele devia ser mudo, e que dessa forma, pois bem poderia ali permanecer todo o tempo que fosse necessário.
Mas mal chegou a noite, uma autentica revolução se operou, o “Boby” levou toda a noite a uivar. Eu abria a porta de acesso á varanda do meu quarto e ele deixava de ladrar dentro de casa, mas em contrapartida saia e começava a ladrar e uivar no exterior. Voltava a entrar e claro que voltava a ladrar e uivar no interior do apartamento. Eu saia com ele para a rua e deixava de ladrar. Acabamos por dar uma volta enorme ao quarteirão, e passado pouco mais de meia hora, voltou ao tormento anterior; com uivos e ‘ladradelas’ constantes, tanto dentro como fora de casa. Foi uma noite terrível, e que parecia nunca mais ter fim. O caos só terminou com o nascer do sol, em que finalmente decidiu dormir como um bebe. Eu, claro também exausto adormeci com a certeza plena de que o “Boby” não poderia passar mais nenhuma noite ali, naquela casa, sob pena de eu me tornar um “morcego” ou enlouquecer, ou ainda poder vir a sofrer um ataque coletivo dos vizinhos e claro uma guerra civil com os meus pais.
Pela tarde providenciei a resolução do assunto com a devolução do hospede temporário “Boby” ao seu legitimo dono e ao seu habitat anterior, perante o meu alivio e também o suspiro dos meus pais, para já não falar provavelmente de todos os vizinhos que se sentiram atacados por uma noite inteira de ladrares e uivos. Ainda por cima o seu ladrar era bastante sonoro, é que o “Boby” embora não sendo um animal de grande porte, era muito forte e sonoro no ladrar e a uivar mais parecia um lobo.
A família Pimenta, como todas as famílias que se prezam, tinha também as suas historias, algumas sobre a vida pessoal dos seus pais, situação que nunca mereceu da nossa parte o maior ou menor comentário. Outros relatos foram surgindo, sobre familiares próximos, no caso concreto sobre uma tia, mãe solteira que vivia na Rua da Cooperativa Lavradiense.
Alguns mais atrevidos na analise afirmavam que era uma mulher de vida fácil, outros que se tinha transformado em lésbica por causa de um amor mal sucedido, e outros ainda afirmavam bem alto que não tinha uma opção sexual definida. Eu na verdade nunca tive grande interesse pessoal por tirar a limpo essa historia escabrosa, ainda mais que ela parecia realmente uma ‘Maria homem’.
Anos mais tarde, regressava eu de uma reunião política na Moita, e decidi passar na zona ribeirinha da Baixa da Banheira, para encontrar-me com alguns amigos e ex-colegas das lides radiofônicas, tendo acabado em amena ‘cavaqueira’ numa cervejaria entre umas boas e frescas canecas de cerveja, e duas ou três doses de sapateira e enguias fritas.
A animada sessão, só terminou já a noite ia bem adiantada. No final da contenda, sabedores do meu destino, os meus amigos desde logo me solicitaram a possibilidade de dar uma boleia a uma jovem com boa aparência e com imagem de ter por ai uns cerca de vinte e poucos anos, que dizia morar nas vivendas junto da ex-fabrica do sal, no Lavradio.
Como todo o mundo afirmava conhecer a jovem, e que era de confiança, e ainda por cima o trajeto era relativamente curto acabei por aceder, muito embora seja avesso a dar boleia a desconhecidos.
No entanto, para meu espanto pessoal, a noite acabou por ser mais longa do que eu poderia esperar. Assim a jovem mal entrou no carro desatou a falar, e não perdeu muito tempo dizendo ao que vinha, tendo solicitado que parasse na zona ribeirinha já ao fundo da alameda do novo parque, pois segundo ela queria andar um pouco e ver as estrelas. Como me parecia uma jovem culta e com alguma formação e maturidade em termos de conversa, lá lhe fiz a vontade e com o desenrolar da conversa os temas foram-se encadeando e a conversa animando.
Acabou por se insinuar de tal forma, que acabamos sem eu saber muito bem como, e de forma totalmente inesperada e irresponsável da minha parte, por fazer sexo, mesmo ali nos bancos da zona do parque onde outrora ficava a casa do Facho, e o famoso tanque redondo. Não posso negar que foi um sexo gostoso, e bem feito, se assim se pode dizer, pois ela apesar da idade mostrava muita destreza, perícia e ligeireza no trato sobre a matéria nas suas mais diversas vertentes.
Acabei por a ir levar a casa quase ao nascer do dia, e para meu grande espanto ela morava na casa dos pais do Pimenta, era portanto a prima do Pimenta, que eu conhecera desde catraia.
Acabou por me confessar que quando entrou no carro já sabia quem eu era, e que desde á muito queria ter essa oportunidade de transar comigo, pois além de simpatizar comigo gostava de homens mais velhos. Depois ainda me confidenciou que para além de que ninguém da sua casa tivesse conhecimento, ela era prostituta, atuando naquela zona da cervejaria, para poder alimentar o seu vicio de consumo de droga em que era consumidora compulsiva na universidade.
Depois de um monte de puxões de orelhas e recomendações verbais, lá a acabei por deixar em casa, e como que o pagamento da boleia foi aquela interessante noite.
O fato de ela referir que ninguém sabia da sua atividade extra escolar não era real, pois questionei posteriormente vários amigos que ainda habitam na zona, e todos eles me referiram saber que na realidade tinha aquela atividade extra curricular.
Muito embora tivesse feito muita questão de ficar com o meu numero de telefone, e tivesse ligado posteriormente um monte de vezes, eu fiz questão de nunca responder ás suas chamadas e não manter mais qualquer contato.
Á muitos anos que não encontro pessoalmente o Pimenta, mas para todos os efeitos é a sua prima que surge na liça, e eu nunca gostei de manter relacionamentos deste ou de outro tipo em termos mais íntimos com familiares de amigos meus. De toda a forma eu gostaria de ter tido uma conversa com este meu amigo sobre este assunto, mas foi impossível, mesmo tentando por meio de amigos comuns manter o contacto, umas vezes por impossibilidade minha e outras por impossibilidade dele próprio. No entanto também sei que a conversa que poderia vir a ter com ele de pouco iria adiantar. Pois que; como tantas vezes já referi, o destino somos nós que fabricamos, de acordo com as linhas de vida que traçamos. A linha de vida e o destino da prima do Pimenta, já á muito que esta traçada, e vim a saber que infelizmente se transformou ao longo do tempo numa consumidora incontrolável de estupefacientes.
A família Pimenta era muito especial, e o avo Pimenta era para nós, um idoso estimável, como uma peça única e muito rara num museu, atendendo á sua provecta idade, ás suas experiências de vida e á qualidade de vida que naquela época levava.
Todos os dias as suas romarias alcoólicas eram um fator de boa disposição, pois totalmente só ou acompanhado pelo seu amigo Silva “Alfaiate”, ele fazia a romaria das ‘tasquinhas’ e botecos, desde o inicio da Avenida J. J. Fernandes até á tasca do tio do Camarão, e regressava pelas ruas interiores da localidade, visitando as restantes “capelinhas” sem exceção, terminando no café da Rua, com um vulgarmente conhecido “traçadinho” que não é mais do que a mistura de vinho com um refrigerante. No caso do avo Pimenta, o pedido era sempre o mesmo com um sonoro:
“Carlinhos podes me dar, por favor, um branquinho com ‘casoza’?”
E o Carlos “Marmitas”, com a maior das reverencias e amizade:
“Claro Ti Pimenta! Cá esta o mesmo de sempre!”
Sei que já faleceu, mas com uma idade admirável para o estilo de vida que levava, e muito embora os muitos “Branquinhos com ‘casoza’” a sua saúde aparentava ser de ferro, também o seu amigo Silva “Alfaiate” já faleceu, e até escolheu para local desse acontecimento a sua terra natal, por ironia do destino Cinfães do Douro, onde ainda foi viver muitos anos, e segundo chegavam informações até deixou de beber, quem sabe se por falta do seu amigo e companheiro de farras, o Pimenta.
Ironia do destino o próprio Carlos “Marmitas” também já faleceu, deixou o nosso convívio diário, e quem sabe se numa outra vida não pode estar a servir o avo Pimenta com “Branquinhos com casoza” tal como o “Frutol” com umas “Carlos Alberto”, que muito embora a quantidade incalculável de cerveja Carlsberg consumida em especial no decorrer das muitas tardes de jogo, acabou por falecer aparentemente de forma serena e totalmente só, ao largo do Cabo Espichel, dentro do seu barco, a pescar, uma atividade que tanto amava fazer para além das suas jogatanas de “Sueca”.
Com tudo isto, não quero de modo algum defender o alcoolismo, muito pelo contrario, apenas demonstrar que nem sempre aquilo que imaginamos poder ir contribuir para acelerar, e muitas vezes concretizar o nosso fim, é realmente a causa principal desse mesmo fim, pois que de uma forma ou de outra ninguém é imortal.
Para mim o fim e o principio fazem parte integrante da vida, e sigo á risca uma máxima que á alguns anos escutei, reproduzida pelo escritor Brasileiro, Paulo Coelho, e com origem num pensamento de Ron:
“Viver é caminhar sobre uma placa de vidro que pode quebrar a qualquer momento. Caminhe portanto consciente dessa verdade!”
A vida deve então ser vivida de forma consciente, sabendo cada um de nós os riscos que tem correr par viver, alargando as nossas avenidas do entendimento, e costurando de forma bem compacta ao longo da vida parcerias indispensáveis à realização dos nossos objetivos, sem renunciar obviamente á nossa própria filosofia de vida.
Existe uma frase, uma máxima do ex-lider chinês Deng Xiaoping que foi aplicada para traduzir o seu entendimento sobre o comercio externo, que no entanto se aplica na perfeição á nossa vida, aos conhecimentos e amigos que vamos encontrando e cultivando ao longo da nossa caminhada da vida:
“Não importa se o gato é branco ou preto, contando que pegue os ratos.”
É uma lição de verdadeiro pragmatismo da vida, uma lição voltada para um absoluto sentido de eficácia, tendo como meta objetiva a vida, e a melhor forma de a viver, no respeito total á dignidade sem no entanto esquecer que a vida é recheada de objetivos até ao seu fim.
Por falar em fim, quem também já teve o seu fim, para além do Carlos “Marmitas” foi o Manuel “Cabanas”. Dois prefeitos exemplos de persistente consumo alcoólico, com destinos e historias finais diferentes, e também com destinos e objetivos pessoais bem definidos ao longo da vida.
Do Carlos ”Marmitas”, ficam na nossa memória muitos acontecimentos que vão povoar as nossas recordações por muitos anos.
Das mais irônicas e hilariantes recordo o dia em que o café foi assaltado e mesmo com a casa quase cheia, ninguém se apercebeu, tal o empenho com que se jogava ás cartas nas diversas mesas, aliado ao ruído geral. Só nos acabamos por aperceber da situação, quando escutamos o Carlos aos gritos dentro de uma das arcas congeladoras, reservada a gelados e que se encontrava vazia naquela época do ano. Como estava colocada junto do WC, ninguém tinha escutado nem reparado na situação, somente demos por isso quando o vimos com a cabeça de fora da arca perguntando se ninguém tinha visto ou escutado nada, ao principio até julgamos que se tratava de mais uma brincadeira dele.
Ao vislumbrar a sua figura saída da arca a risota foi geral, e tinha sido mesmo verdade o assalto, e aquele foi o local escolhido pelos assaltantes para o colocarem, sem que ninguém se tenha apercebido de alguma situação estranha. No entanto ele afirmava que lhe tinham levado todo o dinheiro da caixa registradora, bem como o famoso revolver que nunca disparava...
Esse famoso revolver, esse sim do nosso conhecimento, pelas dezenas de vezes em que o ostentava publicamente, mas nunca era disparado.
Nessas ocasiões hilariantes, e que ficam retidas na memória para sempre, pode sem duvida, também, incluir-se a famosa noite da fuga a pé desde Palmela. Uma caminhada após a barricada na estrada, por parte do grupo dos “chulos” que queriam vingar o abandono no meio da mata, por parte do Julio, de uma prostituta que ele afirmava o ter assaltado na Boite “Sorte do azar” na zona da Volta da Pedra em Palmela. Esta Boite era um dos local de peregrinação obrigatória daquele unido grupo de amigos da noite.
Foi uma noite tenebrosa, aquela, para os participantes que acabaram por chegar a casa a pé e em muito mau estado psicológico, e desse grupo fazia parte o Carlos “Marmitas” e por incrível coincidência nessa noite o Nelson “Fome” e o pai Sr. Carlos Lopes, que nunca acompanhavam essas expedições, mas que nessa noite por ironia do destino também lá estavam. Posteriormente comentavam que aquele tinha sido um dos piores dias das suas vidas.
Do Carlos “Marmitas” ficam ainda as suas muitas historias fantásticas. Muitas delas, para não dizer a grande maioria fantasiosas, que sempre escutávamos com muita atenção, tentando retirar os 10% de veracidade em todo o conteúdo relatado.
As suas muitas “tretas” encaixadas no meio dos relatos das viagens pela Arábia Saudita, vários locais da Europa e das Américas, eram motivo de alguma risota, pois muitas vezes se verificava logo a sua constante contradição em alguns fatos que queria relatar e inventar. O mais irônico da sua vida foi ter encontrado o seu fim precisamente numa dessas suas viagens, verídicas, com passagem profissional pelo estrangeiro, mais precisamente na Alemanha ao cair do alto de uma chaminé de uma siderurgia que se encontrava em manutenção.
Do Manuel “Cabanas”, resgata-se o seu estado quase normal e permanente de alcoolizado, que se tornava engraçado, pois perdia a noção do tempo e do espaço, e para fazer um trajeto de cerca de 100 metros até á sua própria casa, poderia levar horas, pois quando não guiado chegava a andar quilômetros dentro do Lavradio até conseguir atinar com a rua e a casa.
Eram bebedeiras “saudáveis” sem criar conflitos ou algum atrito fosse com quem fosse, e sempre norteadas pela grande quantidade de misturas desde cerveja, moscatel, vinho, bagaço, enfim tudo o que fosse alcoolicamente consumível. Por vezes acabava por fazer parelha, também com o avo Pimenta e o Silva “Alfaiate” e então era uma equipa incrivelmente eficiente no consumo de tudo o que fosse colocado em cima de um balcão e que pelo menos tivesse cheiro a álcool.
O mais divertido seria encontrar uma mesa de sueca ou ramy, contando como jogadores o Manuel “Cabanas” e o Silva “Alfaiate”, era então uma risota garantida, com o:
“Joga!...”
“Já joguei ‘porra’, pensas que estou bêbado ou a dormir como tu!...”
“Como é que já jogas-te, tens mais cartas do que eu, vamos lá contar...”
E quantas vezes a contagem se produzia acabando por mostrar o jogo para todos os participantes, o que originava a maior confusão.
Outras vezes, como o álcool já não permitia uma boa visão dos naipes das cartas, as “arrenuncias” eram umas a seguir ás outras, e quando eram descobertas gerava-se então uma confusão tremenda de:
“Eu não joguei isso!”
“Tu é que não jogas-te aquilo!”
“Eu assisti aqui nesta vasa, mas tu não e tinhas desse naipe, pois na jogada seguinte assistes-te á minha puxada, e até que a vasa foi tua...”
Eram verdadeiras aulas de como no se devia jogar ás cartas, e a prova cabal dos efeitos secundários do álcool num potencial jogador de cartas.
Muitas vezes o esclarecimento acabava mal, e no raras vezes, sobretudo o Silva “Alfaiate” acabou por viajar através de uma das montras.
Não sei se por aversão ao jogo, ou falta de habilidade, jamais vi o ‘Ti Pimenta’ jogar fosse a que tipo de jogo fosse, o seu divertimento era mesmo o ‘tinto ou branco com cazosa’
Quando o “Quim-zé“ me deu a noticia da morte do Saul, relatou-me uma deliciosa passagem de um jovem da nova geração, um dos “putos da minha rua” que conseguiu ainda viver a parte final desses saudosos tempos de animação e companheirismo, e que também conseguiu entender o verdadeiro espírito do grupo.
Assim, ironizou ele, e eu estou certo de que nenhum dos retratados se sentiria de forma alguma ofendido com os comentário, antes pelo contrario, acho que iria ter muito gozo em os escutar:
“... então quando o Saul chegou ao céu já estava o Ti Carlos o “Marmitas”, o Manuel “Cabanas” e o “Frutol” á espera, e disseram ao Saul, então só agora?!
Estamos á tua espera e das cartas novas, que ficas-te de nos trazer, á um monte de tempo, para conseguirmos jogar á Sueca!...
Entretanto o Ti Carlos ‘Marmitas’, virou-se para o Saul, e disse: Mas antes ainda vamos ás ‘putas’.
Saul - É pá! Mas eu não posso andar.
Não faz mal, eu levo-te ás costas!...”
Quem sabe se não terá sido este o fim, ou melhor dizendo; o inicio de um novo convívio, agora desenvolvido na eternidade do paraíso...
Por isso aquilo que aparentemente definimos como fim é muito duvidoso, em termos conseqüentes, e quem sabe se não é, pelo menos na nossa imaginação, um mero intervalo no jogo da vida?!
Ainda dentro do jogo da vida vivida, não posso esquecer as hilariantes historias do irmão do Jorge da “Amélia”, por nós conhecido por “Zarolho” devido á sua deficiência visual, uma acentuada disfunção visual devido a estrabismo. O seu grande sonho teria sido tornar-se guarda-redes profissional de futebol e fica registrada a sua famosa frase, que ele afirmava lhe tinha sido transmitida; num treino de captação do Benfica, após uma brilhante defesa??!!:
“... você fez uma defesa na horizontal da vertical do poste que até lhe podem chamar o miúdo!...”
Claro que nos questionávamos porque razão se fosse assim tão bom guarda-redes, não teria ficado, nem lá no Benfica, nem em outro qualquer clube, e para nós era de evitar a sua presença entre os postes de uma baliza, pois podíamos sempre contabilizar muitos mais “frangos” que defesas dignas desse nome.
Quem também era fonte de animação, mas por outras razoes, eram as “Mijonas” que dedicavam as manhãs á colocação dos colchões ao sol, para secar os efeitos noturnos da incontinência urinária. Era uma risota ver a exposição de colchões ao sol. Depois, por onde passavam todo o mundo comentava e sorria sobre as suas famosas “mijadas” noturnas.
Claro que o jogo da vida comporta muitas etapas, umas boas, outras más, e por vezes recordamos quem já teve etapas muito boas e também sabe viver com as muito más, são os chamados extremos da vida, que se tocam.
O Luis “do café” é um dos muitos exemplos que gosto sempre de recordar como paradigma do que é saber viver bem e ter que adaptar a sua vida ás conveniências do destino, que mais uma vez a sua própria vida confirma e ajudamos de forma determinante a criar.
Quando conheci o Luis, nos anos 70, ele era o dono do café da nossa rua e fazia a sua exploração direta, uma vida esforçada de um homem ambicioso em visível crescendo econômico, recém chegado da guerra do ultramar com uma mala carregada de sonhos e muitos projetos.
A vida foi-lhe sorrindo e decidiu alugar o café e mais tarde trespassou mesmo o negocio e lançou-se na aventura da mercearia e mais tarde juntou esse negocio a um deposito de leite para consumo e revenda com distribuição a revendedores, conseguia assim uma representação comercial o que era ótimo para a época.
A sua vida corria de vento em popa, mas ai as famosas deslocações a discotecas e afins, em como o vicio das apostas monetárias em jogos de cartas, que até ai eram meros divertimentos ocasionais, passaram a rotina, e claro que não existe orçamento que consiga resistir a constantes rombos financeiros diários. Era um homem que não conseguia partir totalmente só para a farra, e como tal muitas vezes pagava para poder ter companhia nas deslocações e assim criou alguns amigos inseparáveis e dedicados como o Luis Costa, e lá partiam para as suas aventuras diárias.
Os inúmeros episódios sucediam-se, com hilariantes cenas, tanto no Lavradio como na Moita, Baixa da Banheira, Palmela, Setúbal, Barreiro e mesmo Lisboa, o mundo com dinheiro para gastar torna-se mais fácil de conquistar. As visitas a bares de alterne eram assim um desporto a praticar com muita regularidade, bem como as patuscadas em tascas fornecedoras de bons petiscos.
De entre as suas maiores peripécias, recordo o dia em que numeroso grupo, de que faziam parte entre outros, o Julio, “Chocha”, Carlos “Marmitas”, e mais um ou dois elementos, que a memória já não recorda, resolveram sair a bordo do carro do Julio e como estivessem a decorrer as montagens do arraial luminoso para as festas do Lavradio, na Avenida J. J. Fernandes, existia um carro movimentado manualmente, tipo zorra, com vários pisos, para proceder á montagem das iluminações no cimo dos arcos que atravessavam a avenida.
A velocidade era tanta e por certo o entusiasmo no interior da viatura, apinhada de ocupantes também não seria muito menor, pelo que ao descerem a Avenida nem se deram conta da presença da viatura, que estava estacionada junto da “Tasca do Matateu” com a sua missão de apoiar a instalação elétrica. O impacto foi tão grande que viraram a “zorra” de rodas para o ar e os dois ou três trabalhadores que se encontravam lá no alto ficaram mal tratados ao cair no asfalto.
No entanto, não satisfeitos ainda com a situação criada, e alegando falta de sinalização na via, saltaram do carro e perante a recepção pouco amistosa do grupo montador da iluminação festiva, não resistiram e foi uma cena de pugilismo coletivo de criar bicho. Este cenário só terminou com a intervenção policial, tendo todo o grupo sido conduzido para a esquadra local, onde segundo rezam as crônicas as cenas pouco dignificantes de boxe continuaram.
Naquela época, ainda não se procedia ao controle de alcoolemia, e só isso explica e deve ter obviado a penas mais severas, pois toda a tarde tinha sido dedicada a jogos de cartas acompanhados pelas mais do que normais cervejas, próprias de uma tarde de verão escaldante. Por outro lado era também comum os trabalhadores, montadores de arraiais festivos, não serem flores de cheiro, e também irem trabalhando acompanhados com umas cervejas frescas, o que deixava a situação, como é obvio, empatada nesta questão ‘copofonica’.
Depois de muitos depoimentos e idas a tribunal, tirando uma pena mínima, tipo multa, para o Julio, proprietário e condutor da viatura naquele dia, tudo acabou em mais nada.
A vida do Luis foi correndo de acordo com os lucros e gastos excessivos, e um dia a fonte como que se esgotou, e o negocio teve que ser vendido e a vivenda onde morava, junto da Quinta dos Fidalguinhos também. Tudo saldado para tentar ajudar a pagar as imensas dívidas pessoais, e compromissos que tinham sido criados tanto financeiros como a credores e fornecedores. A sua vida deu uma volta de 180º chegando ao cumulo de ter que passar a viver com a mulher e os filhos na garagem da própria vivenda que antes fora sua, e da qual agora até tinha que pagar renda mensal.
O Luis “do café” como que passou a esconder-se dos antigos amigos, que diga-se, em abono da verdade também na sua maioria como que desapareceram da sua vida, seguindo uma velha máxima do pai Antunes da Silva, que muitas vezes repetia:
“Muito tens, muito vales! Nada tens, nada vales!”
Eu passei a encontrar o Luis, sobretudo aos sábados, ao fim da manhã, quando já morava na Quinta da Lomba, ai aparecia andando a pé, cabisbaixo com olhar triste, e deveras envelhecido fisicamente no aspecto, resumindo um homem abatido. Nunca deixei de lhe falar da mesma forma de sempre, e era eu quem agora lhe tentava pagar um simples café ou uma cerveja, que muitas vezes recusava, não por falta de vontade, suponho, mas por vergonha de não poder retribuir o convite e oferta.
O meu sentimento perante a sua situação era, e só podia ser de pesar e pena, quando me confidenciou que já tinha passado fome e muitas vezes ironicamente nem tinha leite para dar aos filhos, ele que já nadara em leite!
Esta lição de vida, de um que já tinha tido tudo, e acabou por cair até ao fundo do poço da vida, é para nunca esquecer.
Felizmente manteve sempre a dignidade, e tanto quanto me fizeram saber, esta a conseguir reerguer-se.
Fica indelevelmente marcada na minha memória, a sua situação passada e presente, pois no fundo a vida é realmente isto, momentos altos e, momentos baixos. Todos nós temos que saber precaver-nos para conseguir agüentar o melhor possível os baixos, e nunca esbanjar nos momentos altos.
O Luis, apesar de todas as derrapagens da vida, parece estar a dar a volta por cima, outros no entanto, não conseguiram agüentar tão bem os impactos negativos dos momentos baixos, como foi o caso do Victor “Vitinha” meu estimado companheiro de ‘badernice’ e baldas na Escola Álvaro Velho, em que me acompanhava nas farras escolares de 1973/1974, que quase me valeram uma reprovaç4ao, para além claro do primeiro contato com o mundo profissional.
A sua vida decorria comum a tantos jovens, filhos únicos de pais da classe média daquela época. No entanto, anos mais tarde o vicio do consumo de droga, conduziu o Victor a uma situação de dependência quase extrema.
Conseguiu apesar mesmo disso, tirar um ótimo curso de soldador, numa área especifica e bem remunerada, o electrogênio, mas todo o dinheiro seguia direto para alimentar o vicio. A sua situação era de tal forma incrível que numa noite de chuva intensa, um verdadeiro temporal, o encontrei caído numa valeta da via publica, junto da casa do Carlos “Marmitas” e com a ajuda deste lá acabamos por o conduzir até a sua casa, naquela triste figura...
Ainda recordo muito bem a forma bem envergonhada como a mãe nos abriu a porta, para o receber, e como depois de o colocarmos no quarto, em cima da cama, qual peso morto, ela nos confidenciou que era agora praticamente diário aquele seu estado, e que nem ela nem o marido já tinham poder para conseguir fazer alguma coisa para reverter aquele cenário, tentando mudar a situação.
Tive noticia de que conseguiu se recuperar, e felizmente nunca chegou ao estado lastimoso e catastrófico do “Manelito”, no entanto, este foi um dos jovens da nossa geração apanhados nas malhas da droga, que nunca se conseguiram curar a 100% do vicio, que vai conquistando o mundo.
Por outro lado o seu vizinho de prédio e piso, o José Antonio “Cigano Prudêncio” que em certo momento também se viu enredado no vicio, embora a níveis muito mais baixos, conseguiu sair na totalidade e hoje leva uma vida perfeitamente normal. O José Antonio devido ás companhias que começou a ter, nomeadamente o vizinho Victor, Nelson Lopes e “Manelito” entre outros, entrou de certa forma nesse mundo, mas com a sua força de personalidade não se deixou capturar. A sua vida pessoal ajudou-o a recuperar totalmente dessa dependência, mas acabou por agravar uma, outra, que não era nessa época a sua especialidade. Assim e graças á sua passagem pela Marinha passou a ter uma capacidade invulgar de beber, e o que antes eram meros treinos, passaram a ser verdadeiros torneios de levantamento de copo cheio.
Recordo ainda as festas de aniversario na sua casa contando com a presença do Victor, Joaquim Núncio (Quim-Zé) e Alfredo, os chamados 3 amigos da “Vida Airada”, em que se consumiam tão somente refrigerantes e mais nada. Depois a memória dá um salto para uns anos mais tarde, e para umas famosas férias no Algarve, precisamente no ano da minha inspeção militar, em que ele e o “Quim-Zé” partiram mais cedo para o Algarve com destino a Lagos, e dias depois, tal como combinado, acabamos por nos encontrar em Armação de Pêra, e o José António teve que regressar ao Barreiro dias depois, com a viagem paga por nós, pois tinha conseguido gastar em 15 dias todo o dinheiro que seria destinado a um mês e meio.
Segundo o relato dos outros companheiros de viagem, a sua vida em Lagos constava de Discoteca dia-sim, dia-sim, com a companhia, sobretudo, de jovens Nórdicas, que eram a sua perdição. E claro o consumo dos respectivos ‘baldes’ de álcool, chegando pela manhã invariavelmente bem acompanhado, tanto de companhia feminina como ‘copofonica’ ao hotel-pousada, onde se alojaram. O dia era sempre dedicado a tentar recuperar para ao fim da tarde dar inicio a uma nova jornada ‘copofonica’ e de conquista feminina.
Em Armação de Pêra conseguimos reduzir o seu impressionante ritmo, no entanto ainda conseguiu deixar-nos um problema para resolver com um pescador tipo “Hercules” a quem no meio da ‘copofonia’ confundiu com um gay e esbornou.
Conseguimos, eu e o ‘Quim-Zé’, anular uma situação complicadas numa das noites, no entanto, dias mais tarde, já sem a sua presença, tivemos que estabelecer um pacto de não agressão e amizade com o “Hercules” de Armação de Pêra, para não virmos a ter sérios problemas. O José António já tinha regressado ao Barreiro, e o seu problema era mesmo o orçamento pessoal totalmente esgotado. O seu regresso a casa foi inevitável, tendo eu e o “Quim-Zé” continuado umas férias que foram inesquecíveis, terminadas em Sesimbra, depois de muitas peripécias pessoais pelos Algarves.
Claro que a presença de um café como o da nossa Rua, é sempre um desafio para a juventude em termos de descoberta do álcool e outras novidades lúdicas. O José António, sem duvida que ali iniciou o seu tirocínio, acabado mais tarde no decorrer da vida militar, mas pouco importa a geração, pois outros já com mais idade e experiência também se dedicavam a não deixar os seus créditos por mãos alheias. Um desses exemplos era o Vito “Bito” um ‘doente’ sectário ‘Benfiquista’, que de quando em vez conseguia bater recordes imprescindíveis de má disposição aliada de forma direta à ‘copofonia’ baseada na bagaceira.
Em dia de derrota do Benfica sempre seria para nós um dia de plena gozação em cima do “Bito”. Essas jornadas ludicas admitiam muito gozo á sua pessoa, o que originava que ficasse que nem uma fera. A sua resposta com muito má disposição de profundo sofredor encarnado, deixava a todos largamente felizes, mesmo outros ‘Benfiquistas’ gostavam de o ver enfurecido, pois acabava por se tornar altamente ridícula a sua postura. Era um individuo com muito mau saber perder, conflituoso, e eu em toda a minha vida nunca conheci um fanático tão doentio, e que me desse tanto prazer gozar de forma frontal.
A sua clubite doentia chegava ao ponto de não falar meses a fio com o pessoal, muitas vezes devido a alguma simples brincadeira. No entanto, para ele o contrario era já tido como normal, e quando o Sporting perdia era ver o “Bito” que nem um “papagaio” de plumas ao vento.
Acabei por chegar á conclusão que o convívio com aquela pessoa e tipo de personalidade não deveria passar muito para além do bom dia, boa tarde e boa noite, e assim a pouco e pouco comecei a proceder. Outros como o Luis Costa ainda lhe deram algumas oportunidades, mas ao fim de algum tempo acabaram por ser ainda mais radicais cortando totalmente o relacionamento, por vezes por largos meses, e outros mesmo em definitivo.
Se falarmos de individuo endinheirado, ‘novo-rico’ nunca poderemos esquecer o Silva, construtor apelidado por mim de “Pedreiro-Silva”.
Foi meu colega na Escola Álvaro Velho, e vindo da classe media mais baixa, transformou-se radicalmente no protótipo do chamado “Bimbo Novo Rico”.
Assim, e após iniciar a vida profissional, graças ao seu pai, como candidato a empresário, da construção civil, virou projeto de empresário. Nos primórdios, o seu pai era um mero carpinteiro de cofragens, depois passou a efetuar trabalhos como alegado empreiteiro, depois começou a tomar obras de empreitada e mais tarde dedicou-se então a efetuar construções por conta e risco próprio.
Assim que o Silva deixou de morar num simples apartamento, para passar a residir numa moradia por si construída e que não conseguiu vender, a família Silva como que se transformou da noite para o dia como se já fossem os magnatas locais da construção civil.
Ao longo do tempo fomos assistindo não poucas vezes a largas reclamações sobre a qualidade da sua construção e em especial dos acabamentos das obras.
Recordo um dia em que na zona dos Casquilhos, com o Carlinhos e o Humberto, por mero acaso encontramos o Silva com 2 moradores reclamantes que quase o iam “linchando”, não fosse a nossa ocasional presença no local, e tudo por causa de defeitos na instalação elétrica do edifício que segundo eles já tinham provocado graves problemas.
Agora acontecimento digno de nota, foi o incêndio verificado no apartamento do Luis Costa, devido a um exaustor da cozinha mal instalado. Toda a cozinha acabou por arder com prejuízos incalculáveis, para além do obvio risco de vida.
O Silva “Pedreiro” é para mim o mais puro exemplo de um “Aldrabão” que quer enriquecer, á custa do dinheiro dos outros.
Em Portugal, é comum a existência deste tipo de indivíduos, que se servem da construção civil para ir trabalhando esse objetivo, de se tornarem em novos ricos. Vão construindo com material razoavelmente barato, para conseguirem vender com margens de lucro bem altas, mas em que a qualidade final das construções que vão edificando não é minimamente digna do seu custo final, entrando assim diretamente nos bolsos dos clientes de um modo escandaloso.
Ao longo da nossa vida algumas amizades ficam indelevelmente marcadas, seja pela qualidade e quantidade dos acontecimentos ou por outros atributos como a lealdade que eu considero um dos mais importantes e fundamentais numa amizade verdadeira.
Da minha juventude, e convivência passadas na nossa rua, no nosso centro do mundo, na Rua Grão Vasco; acabaram por florescer muitas amizades, embora que duas delas sejam especiais, e obviamente fiquem guardadas na minha memória para toda a vida, no entanto contingências da vida e formas diferenciadas de analisar e considerar a amizade; originaram que a sua graduação ao longo do tempo fosse diferenciada, e onde antes existia amizade surge agora em seu lugar conhecimento e onde existia amizade existe referencial de companheirismo e verdadeira amizade com mais de 30 anos.
O Luis Costa “Costinha” é um conhecimento de mais de 30 anos, que ganha no conhecimento e perde na amizade, devido talvez á contingência astrológica que me torna um ser inconformado e intransigente com a lealdade, perante certas situações, e que me leva a graduar e considerar como de ouro o modo de encarar alguns desafios, com uma preciosidade impossível de contabilizar.
Pode parecer um defeito pessoal meu este sentimento de frontalidade em algumas situações, mas sempre tenho preferido perder um alegado bom amigo, do que, perder a minha dignidade e personalidade, hipotecando aquilo que sei que sou e pela minha maneira de estar na vida sempre; irei continuar a ser enquanto viver.
Um relacionamento de amizade tem para mim de ser leal na verdadeira acepção da palavra, feito de atos e palavras e não de intervenções ou jogos palacianos de bastidores apenas para aparentar aquilo que na verdade não é. Quem é, ou se diz meu Amigo, tem que ser realmente meu Amigo, não jogando nas minhas costas facas, e quando tem algo para me dizer, diz-me na cara e não manda recados por terceiros.
O relacionamento com o Luis Costa e a sua família era realmente, aparentemente, bom, até ao dia, em que senti uma determinada deslealdade no modo de frontalidade com que sempre tratamos tudo nas nossas vidas, ou pelo menos deveríamos tratar.
Agora isso já pouco importa, é passado. Passado é isso mesmo, o que está feito, feito está. Nada mais pode voltar a apagar aquilo que é dito ou feito. São memórias que ficam indelevelmente marcadas para todo o sempre, porque eu sou realmente de perdoar, mas nunca, jamais, de me esquecer.
Recordo do Luis Costa os saudosos jogos de futebol em que ele estava terminantemente proibido pelo pai de se cansar ou apanhar sol na cabeça. Por isso, no velho campo onde hoje esta edificada a Urbanização da Quinta dos Loios, ele jogava sempre na posição de guarda-redes e com um lenço á mão de semear, não fosse o Sr. Costa, pai, chegar ao local sem qualquer aviso prévio.
Nós tínhamos uma espécie de pacto de amizade, e sempre que se avistava o Sr. Costa, logo o Luis era imediatamente substituído na baliza, passando a mero assistente do jogo.
Até uma determinada idade o Luis foi um jovem super protegido pelos pais, tanto nos horários como na sua participação efetiva nos divertimentos e mesmo na liberdade de movimentos, o que já não aconteceu tanto com o seu irmão Jorge, que viveu uma juventude mais livre de compromissos com os pais.
Assim, e enquanto a maioria se movimentava bem á vontade, quase para qualquer local e com horários um pouco liberalizados, o Luis estava de certa forma controlado e empalhado nessas liberdades.
Depois, de um momento para o outro foi a abertura total, e então o Luis passou a conviver conosco de igual para igual.
Sempre foi deveras introvertido, exceto quando bebia um cerveja a mais, ai sim transfigurava-se, e acabava por ficar o tipo mais extrovertido do grupo, com uma capacidade de intervenção e conversa fora do comum.
Recordo as muitas idas ao futebol, não fosse ele um Sportinguista dos sete costados, tal como eu, e das suas muitas aventuras. Recordo ainda muito bem o celebre dia de um jogo da Taça de Portugal, no saudoso estádio José de Alvalade, contra o Alcobaça, em que no momento da saída do estádio, descobriu uma jovem e bela adepta da equipa adversária que estava acompanhada pelo pai, e como estivesse a ameaçar uma queda de chuva, vinha munido de um guarda-chuva, tipo bengala. O bom do Luis, perante tanta beleza, e depois de uns quantos ‘piropos’ dirigidos á jovem, todos eles sem o mínimo de maldade diga-se em abono da verdade, resolveu dirigir-se ao pai, nos seguintes termos:
“É vizinho!...
Bem que me podia dar a sua filha, eu sou bom moço, trabalhador e até trabalho na Quimigal EP!...”
O pai da jovem não se fez rogado ao pedido, e como já estava por certo farto de tanta conversa nas suas costas, dirigida á filha, acabou por se virar e não foi de modas, aplicou uma valente bengalada com o guarda-chuva no Luis, e disse-lhe:
“Pronto meu amigo!...
Já lhe dei a minha filha!”
Foi a risota geral de todas as pessoas que estavam próximas e presenciaram a situação, perante um Luis Costa atônito com o que lhe tinha acabado de acontecer.
As idas ao futebol eram sinônimo direto de mais do que prováveis aventuras. Nós tínhamos como que um ritual, de passagem obrigatória pelo Centro Comercial Caleidoscópio no jardim do Campo Grande, para lanchar e em seguida preparar uma romaria a pé até á baixa da cidade, ou outras vezes só até á chamada boca do metropolitano de Entrecampos, ou ainda se fosse época disso, a uma ida até á saudosa Feira Popular de Entrecampos.
O Luis tinha um dom especial que até hoje ninguém consegue entender, ele sem grande esforço conseguia atrair sobre si o olhar e interesse dos “maricas”. Assim muitas vezes se predispunha á brincadeira hilariante de fazer de conta que se deixava “engatar” e assim conseguir o pagamento de famosos lanches no Centro Comercial Caleidoscópio, pagos integralmente para todo o grupo, pelos “maricas” que por ali paravam em apreciável numero, sempre em busca de aventuras novas.
A estratégia era muito simples, e sempre cheia de êxito. O pessoal lanchava todo e o Luis; entretanto escolhia uma “vitima”, a quem acabava por dar um pouco de conversa, e quando este pensava que tinha o engate consumado, o pessoal estrategicamente ia saindo de cena, deixando o Luis para trás a dar a ultima conversa á “vitima”. Entretanto de modo dissimulado, também ele acabava por ir embora juntando-se ao grupo.
Obviamente que a conta ficava para o “maricas esperto” pagar!
Foram tantas as vezes que comemos laudos lanches, pagos por infelizes “maricas apaixonados e abandonados”.
Nas nossas deslocações á Feira Popular, para além do sempre normal jantar, seguia-se a noitada de tradicional romaria aos diversos divertimentos e claro sempre acompanhada por um grandioso torneio de ‘matraquilhos’ que nos deixava as mãos cheias de calos e bolhas.
Na maioria das noites o divertimento só acabava quando a feira era oficialmente encerrada, já de madrugada, depois das 2 horas. E já sem possibilidade de se apanhar o ultimo barco para o Barreiro. Então, iniciava-se a verdadeira romaria a pé até ao Cais do Sodré, para beber o tradicional cacau da ‘Ribeira’ e se ir fazendo tempo para apanhar o primeiro barco com destino ao Barreiro, e a casa para umas horas de merecido sono.
A chegada a casa depois de mais uma noitada estava sempre programada para muito próximo das 7 horas.
No entanto outras vezes ainda se chegava mais tarde, pois a ida ao cacau era substituída por uma paragem nas ‘roulotes das bifanas’ que na época se situavam no Areiro, Saldanha, Arco do Cego e Cais do Sodré.
Este eclético grupo era normalmente composto por mim, Luis Costa, Quim-Zé, Lagarto, e por elementos variáveis e que muitas vezes davam direito a mais um divertimento extra na hora da chegada ao Lavradio, com o dia já a romper. Por isso ainda recordo entre outras situações divertidas a celebre manhã em que o “Quim Avantajado” depois de nos ter acompanhado em mais uma noitada, ao sair do autocarro na ultima paragem da Avenida J. J. Fernandes, já tinha á sua espera a esposa altamente enfurecida. Foi uma cena incrível de ver, com aquela figura enorme a ser comandada a caminho de casa pela esposa aos gritos a trás de si, mais parecia a mãe e o filho.
Normalmente as aventuras que aconteciam em Lisboa, eram de molde a colocar qualquer um a rir a bandeiras desfraldadas, tal a sua origem diversa e respectivos desenvolvimentos.
Eu pessoalmente participei em muitas, e em outras acabei por posteriormente ser colocado perante a sua narração integral.
Um dia o futebol terminou mais tarde, e o pessoal lá iniciou a romaria habitual com uma primeira paragem no Centro Comercial Caleidoscópio, onde acabaram por ser bebidas mais uma cervejas, bem mais do que a conta, pois já antes no estádio se tinham bebido também uma quantidade apreciável, assim e com o pessoal já bem “entornado” o trajeto foi feito em grande animação pelo interior do parque do Campo Grande, acabando por encontrar-se um cigano junto da zona do parque infantil, ele estava a negociar um revolver, que na verdade era um pistolão enorme, mais parecia uma famosa 45 do tempo do Oeste. Depois de muita negociação foi acertado o preço em 200$00, o que para a época era uma quantia generosa, e depois de feita a transação, qual grupo de caubóis decidiram ir até á Avenida EUA, beber e comer mais alguma coisa.
Então o Luis já bastante ‘festivaleiro’, como que se apaixonou por uma jovem que tranquilamente namorava numa das mesas da pastelaria. Então, armado em D. Juan conquistador, munido de pistola em punho, dirigiu-se á mesa e perante a calma da jovem e o olhar atônito do jovem, não foi de modas, sacou da pistola e correu com ele da mesa. Ele perante a presença da arama, acabou por fugir a sete pés, deixando a jovem sozinha na mesa. Então o Luis; declarou-se á jovem que, perante a conversa, só referia desconhecer que o namorado era assim tão cobarde em deixá-la ali só. Entretanto o dono do café, perante a nossa incomoda presença e a visão da arma, telefonou para a esquadra da policia do Campo Grande. Por mera sorte metade do grupo que não tinha a pistola consigo, foi lá levado para averiguações, claro que foi a risota, com todo o pessoal a afirmar que realmente tinha uma pistola, um pistolão, mas que não tinha balas só dava leite...
Os policias estavam indignados com o grupo e, sobretudo com o dono do café que os tinha feito passar por aquela triste figura.
Horas mais tarde, já com o grupo todo reunido, lá fomos até á Ribeira para o tradicional cacau e umas bifanas para se recuperar da noite de aventuras e começar bem o dia.
Ali junto da ‘roulote’ do cacau, a nossa imagem de grupo unido era bem visível, aliada á imagem do “Quim-Zé” com a arama colocada á cintura, deixando ver a coronha, mais parecendo um policial ou um gangster, o que levou toda a vagabundagem que por ali se encontrava a afastar-se com receio, pensando que era um grupo de jovens policiais ou algum gang de malfeitores vindos de algum bairro da periferia.
Após o regresso a casa o problema era saber quem iria tomar conta da arma e assumir a responsabilidade de guardar aquele empecilho em sua casa. Claro que como o efeito ‘copofonico’ já tinha passado, todos recusavam, pois ninguém sabia na realidade qual a origem do pistolão. No final de muita indecisão e empurra para cá empurra para lá, a mesma acabou por ficar numa primeira ocasião em casa do “Quim-Zé”.
Sei que essa arma se acabou por tornar um verdadeiro empecilho, um inferno em termos de tentativas para fazer desaparecer, tendo acabado, por ter sido lançada ao rio no meio de uma travessia fluvial para Lisboa.
As aventuras em Lisboa, não se resumiam ao impacto pós-futebol, outras deslocações a eventos desportivos e culturais levavam a emocionantes desfechos.
O Sporting atingiu a final da Taça CERS, em hoquei em patins. Numa época em que dispunha de uma equipa verdadeiramente fabulosa. E o jogo final realizou-se na saudosa nave de Alvalade, e como momento único da historia do clube e mesmo do país, o grupo combinou uma deslocação em força. Nesta ocasião importante também se juntou o “cão de luxo”, um Benfiquista de mente saudável e pouco interessando em confusões clubisticas, e que muitas vezes nos acompanhou em algumas aventuras e em eventos desportivos, independentemente do clube.
E assim, perante um pavilhão super cheio de gente, e a rebentar de entusiasmo e emoção, a nossa alegria era transbordante, e a ânsia de assistir ao vivo a mais uma gloriosa vitória internacional era ainda maior.
Depois de um jogo emocionante o Sporting conquistou o troféu, o único que lhe faltava conquistar a nível europeu em hoquei em patins, e ainda por cima conquistado em casa, perante a loucura clubistica dos leões.
O Luis Costa bastante efusivo decidiu invadir o ringue, saltando a rede com o objetivo de festejar no local e ficar com a braçadeira do capitão de equipa, Salema, como recordação do momento histórico. E se bem o pensou, melhor o realizou. Após o apito final do jogo a multidão não se conteve, e muitos adeptos saltaram para dentro do ringue, ele foi um deles, tendo subido a rede e saltado lá do alto, caindo sobre os calcanhares e sobre o próprio jogador Salema, a quem conseguiu rasgar a camisola e retirar a braçadeira de capitão de equipa.
Era a loucura total em Alvalade, pois o Sporting que até já tinha sido Campeão Europeu contra o Barcelona, não tinha ainda aquele troféu e uma vitória em casa era algo de maravilhoso para nunca mais se esquecer.
Entretanto o Luis enquanto esteve, por assim dizer, quente, nem notou que ao cair sobre os calcanhares tinha provocado problemas graves na sua coluna cervical. No meio de toda aquela imensa festa no meio do ringue, e antes mesmo da entrega da taça aos vencedores, demos com o Luis caído num dos cantos, sem conseguir quase andar pelos seus próprios meios, cheio de dores. Queixava-se que não conseguia manter-se de pé, que lhe doíam os pés e as costas.
Pensamos na altura o pior, no entanto como jovens aventureiros e inconscientes, lá o conseguimos encorajar a andar embora apoiado em dois de nós, dizendo que aquilo iria passar dali a pouco, tinha sido só um mau jeito, etc...
Hoje, sabemos que deveria ter sido imobilizado de imediato e deveríamos ter recorrido aos serviços médicos. No entanto como ele também não queria apoio medico naquela altura, acabamos por aceitar a sua decisão e em conjunto com a nossa, decidimos simplesmente ajudar a amparar o seu sacrificado andamento.
Recordo que só conseguiu agüentar, embora com muito sofrimento e sempre amparado, até junto da churrasqueira do Campo Grande. Ali disse que não agüentava mais e tivemos que improvisar rotativamente uma cadeira com as mãos e braços cruzados, e o ir transportando ao colo todo o Campo Grande até ao metropolitano.
Foi uma autentica via sacra, quase uma noite para conseguir trazer o Luis até ao Terreiro do Paço. Hoje sem duvida o teríamos colocado num táxi, mas naquele tempo, nada nem ninguém nos fazia frente a um desafio.
Quando finalmente o conseguimos deixar em casa, todos nós tínhamos a certeza plena de que o que tinha acontecido não se resumia a um simples mau jeito na queda, e também que não iria resolver-se com um simples repouso.
Na realidade viemos posteriormente a tomar conhecimento de que ele tinha tido muita sorte, pois ao cair daquela forma sobre os calcanhares tinha provocado uma lesão muscular na coluna, que o poderia ter levado inclusivamente á morte ou a fica paraplégico.
Acabou por ter que andar algum tempo com a ajuda de muletas, ‘canadianas’ para lhe facilitar o andamento, e fazer fisioterapia e tratamentos vários durante largo tempo. Para nós foi uma experiência terrível e inesquecível.
Mas as aventuras, mesmo com todas as ameaças de se poderem correr riscos, não paravam de se repetir, sendo que uma das mais hilariantes acabou por decorrer mais uma vez na zona do Campo Grande em Lisboa. Após mais um jogo de futebol assistido no Estadio de José de Alvalade, todo o grupo lanchou como sempre no Centro Comercial Caleidoscópio, e ficou decidido que naquele dia iriam andar de barco no lago do Campo Grande.
Sendo um grupo numeroso, alugaram-se dois barcos, e como as cervejas já pesavam um pouco, todo o mundo estava bastante animado.
Descobriram duas gordas que pachorrentamente remavam ao largo, e desde logo ficou traçado como objetivo, animar um pouco a tarde, fazendo um ataque com chapadas de água com os remos junto do barco das gordas. O resultado foi uma verdadeira batalha naval, com um barco de cada lado, e os remos a bater na água e tanto as gordas como os ocupantes dos dois barcos foram ficando encharcados. Elas não paravam de gritar e o pessoal ficou todo ensopado. Para completar, o tempo foi passando e o funcionário que controlava o tempo e a autorização e funcionamento dos barcos não parava de apitar desde a margem, para se terminar com a batalha e regressar ao cais para devolver os barcos.
A loucura foi tanta que por certo se gastou pelo menos o dobro do tempo contratado inicialmente. Ele estava que nem um louco na margem, e quanto mais apitava e gesticulava, mais os barcos se afastavam, chegando perto da outra margem do lago. Ai todo o mundo decidiu abandonar os barcos mesmo ali, sem mais conversas e cair fora para não ter que aturar o empregado, nem pagar o tempo excedente, e ainda por cima os barcos estavam cheios de água no seu interior. Todo o mundo acabou saindo a pé pela água fora até á margem, e os barcos ficaram assim á deriva.
Todo o grupo estava encharcado até aos ossos, e foram cenas dignas de serem filmadas com o grupo a despir-se junto do parque infantil, para torcer a roupa tentando retirar a água e estendendo a mesma nos arbustos e em alguns brinquedos na esperança de que a mesma de alguma forma secasse com o vento.
O “Lagarto” tinha a sua farda de funcionário da ‘Carris’ totalmente ensopada e acabou por ficar somente em cuecas e sapatos na esperança de alguma recuperação das peças de roupa. O “Quim-Zé” torcia o seu casaco de antílope, e a todos parecia que; quanto mais ele o torcia, mais água dele saia. Enfim uma situação hilariante de um grupo de ensopados em trajes menores, no meio do parque do Campo Grande, tentando secar a roupa.
Para completar o cenário, e mesmo naquele triste estado o “Quim-Zé” e o “Lagarto” conseguiram engatar umas miúdas que acharam muita graça á situação e acabaram por ficar por ali a falar com o grupo que se encontrava de tronco nu em cuecas...
A tarde claro que á muito já tinha passado e a noite já ia avançada quando o grupo decidiu ir levar as jovens a casa, agora como se pode conseguir imaginar, o “Lagarto” ébrio, em cuecas, com a fada da ‘Carris’ ensopada e dobrada num braço, na berma da faixa de rodagem do Campo Grande a pedir boleia para Chelas. Foi na verdade das cenas mais caricatas e incríveis que este grupo viveu.
Normalmente as passagens de ano eram momentos aproveitados para o grupo realizar um jantar de confraternização em Lisboa, e depois vaguear de festa em festa. Assim aconteceu durante alguns anos, até que se tornou quase obrigatório e tradicional, ainda mais que raro era o ano em que não aconteciam aventuras incríveis.
Num dos anos, o grupo por motivo de cumprimento da vida militar por alguns elementos, ficou reduzido a mim e ao “Quim-Zé” que mesmo assim lá partimos para Lisboa. No intuito de passar a meia noite num restaurante do Bairro Alto, apanhamos o elevador ali junto dos Restauradores, mas devido ao adiantado da hora, acabamos por passar a meia noite com o ascensorista e uma garrafa de espumante para os três. Foi delirante, pois o homem agradeceu tanto termos ficado por ali com ele, pois caso contrário teria passado de ano totalmente só.
Num outro ano todo o grupo foi adotado por um enorme cão, de raça pastor alemão, que correu meia cidade sempre atrás de nós, e acabou por viajar de barco para o Barreiro, e terminou como fiel amigo do “Gadelhas” da barra-a-barra, uma das figuras típicas do Lavradio.
Na realidade no final da noite, e após ter andado com o grupo todo o tempo, o animal não se queria de forma alguma separar dos novos amigos, e então ficou decidido que viajaria para o Barreiro conosco. O problema inicial era como iria viajar no barco e assim após sorteio coube ao Luis Costa dirigir-se á bilheteira solicitando informação. Poderia sim viajar pagando ½ bilhete, estava então resolvida essa situação, no entanto ele não tinha trela e como bom guarda, rosnava a todo e qualquer estranho que se aproximava do grupo.
Acabamos por comprar o ½ bilhete e conseguir levar a fera para o porão do barco, no entanto sem querer acabamos por espalhar o pânico geral nos outros passageiros, pois ele de sociável com estranhos pouco tinha e não parava de rosnar de forma ameaçadora.
Já no Barreiro, foi impossível utilizar o autocarro com a presença da fera, e por isso acabamos fazendo uma autentica romaria pela linha férrea até ao Lavradio.
Ninguém tinha imaginado em momento algum o ultimo problema. E então chegados a casa, ai sim surgiu a grande questão; quem iria tomar fica responsável por tomar conta da fera?
Resposta: ninguém!
Numa primeira tentativa ficou na minha casa, entrou escondido até á varanda do meu quarto. Imagine-se escondido! Um cão, de raça pastor alemão, escondido num apartamento, só se for mesmo para rir. No entanto aconteceu.
Após lhe ter dado água e comida, na esperança de que se queda-se tranqüilo e se possível o mais mudo possível, nada disso obviamente veio a acontecer, pois ladrava do primeiro andar, para, a todos os transeuntes e viaturas que passavam na rua.
Foi assim rapidamente descoberto, e claro que eu não podia argumentar que ele tinha nascido na minha varanda, ou que tinha vindo numa nave espacial com marcianos que ali tinha aterrado e deixado o cão.
Recebi imediata ordem de despejo do fiel amigo por parte do meu pai, e eu extenuado da noitada, decidi colocar a fera um pouco na rua, junto da porta do edifício na vã esperança de que se acalmasse um pouco. Pensava eu, na possibilidade de que assim me permitisse dormir para depois eu tentar arranjar uma solução. Ainda mais que desde logo eu tinha avisado que a minha disponibilidade era temporária, até que o grupo se voltasse a reunir, para decidir o que fazer, e destino a dar á fera.
Mas nada feito. Ele aproveitava a abertura da porta principal do edifício e subia a escada, e não para de ladrar na soleira da porta do nosso apartamento, como que chamando por mim.
A situação ficou como que incontrolável e acabei por falar com o “Quim-Zé”, que se prontificou a uma tentativa de dominar a fera. No entanto acabei por saber mais tarde que os seus problemas foram idênticos aos meus.
Não sei até hoje muito bem como conseguiram, mas o fato é que o “Gadelhudo” da barra-a-barra acabou por adotar o animal, e a situação ficou resolvida.
Como lição final ficou que nunca mais se deveria voltar a adotar daquela forma um animal. Por outro lado, para nossa grande satisfação, passamos a encontrar o “Gadelhudo” sempre escoltado pelo seu e nosso fiel amigo.
Num outro ano, o Luis Costa passou uma noite de Natal no Quartel de Mafra e a passagem de Ano, de serviço na porta de armas do Estado Maior do Exercito no Restelo. Acabou, no entanto, por ser recordada por nós a sua ausência, chegando a aventar-se a hipótese de uma passada por lá, para uma taça de espumante. No entanto nesse ano acabamos por ter que esmurrar dois bêbados impertinentes, um na rotunda do Marques de Pombal e outro junto da Praça da Alegria, e não restou tempo para essa programada visita.
No ano seguinte decidimos que a passagem de ano teria de ser bem comemorada para fazer esquecer a falha do Luis no ano anterior, e realmente foi uma noite para nunca mais esquecer no resto das nossas vidas.
Acabamos por rumar ao Bairro Alto em Lisboa para degustar um laudo jantar de marisco, bem regado com cerveja e outras bebidas espirituosas e depois decidimos ir visitar algumas festas pela cidade.
Mas tal não veio a acontecer, e mais uma vez o Luis Costa acabou por ser o grande responsável e a ter influencia direta no ocorrido.
Quando nos dirigíamos para a zona do elevador que dá acesso aos Restauradores, fomos abordados por um simpático e afável cavalheiro, que após longa conversa com o Luis, acabou por convencer todo o grupo para uma ida até a sua casa, situada na Rua da Atalaia 176. Assim, e com a argumentação de que iria ter lá na sua casa umas amigas, para uma festa tipo familiar, mas como estava só tinha resolvido tentar encontrar pessoal simpático para animar a noite, lá nos acabou por convencer.
Ao chegarmos a sua casa desde logo descobrimos que se tratava de uma alfaiataria, que tinha a residência a ocupar os fundos da casa. A conversa tinha sido desenvolvida na base de uma festa, mas na realidade por enquanto de amigas nem o cheiro e para festa era visível muito pouca preparação ou mesmo nenhuma. No entanto a sua conversa continuava na base de que iriam chegar a qualquer momento, e como nós fossemos 5 estava tudo ok e não iria haver problema, pois elas eram precisamente seis.
Tinha realmente algumas bebidas em casa, mas não muitas nem diversificadas diga-se, e quanto a comida a situação era igual, mas também ai a sua conversa baseava-se em que elas é que iriam trazer o restante. Tinha argumentação para tudo, e arranjava novos e diversificados argumentos para o que faltava em termos das perguntas que lhe eram colocadas.
A sua argumentação sobre a breve chegada das amigas, já estava a transformar-se em horas, e as bebidas que tinha em casa iam desaparecendo, para além de que cada um de nós começava a ficar bem ‘iluminado’ com tanta mistura ‘copofonica’.
Como o fato em presença, da falta das prometidas damas, e a sua conversa também era pouco animadores. Tudo isto aliado ao fato de todos já termos bebido muito para além da conta, tudo isso contribuiu para um, certo entorpecimento geral, normal perante a quantidade e diversidade do álcool já consumido, o que acabou por degenerar nos cenários que vieram posteriormente a acontecer.
Assim, na verdade e muito resumidamente, ao longo da noite que se iniciou; com muita conversa para entreter, tentando fazer tempo até que as tais alegadas amigas chegassem, o cavalheiro acabou por revelar-se um “maricas” passivo, que sem se saber muito bem como, no meio de toda aquela conversa e entorpecimento geral, acabou por conseguir abrir os fechos das calças do pessoal e consumar sexo oral com todo o grupo.
O homem ficou realizado e deliciado com tanto instrumento ao seu dispor, e nós fomos a pouco e pouco acordando da letargia, e tomando consciência de que não iria ter festa alguma, e amigas muito menos, o seu único objetivo foi ele conseguir fazer a festa dele, e dessa forma poder chupar umas pilas jovens, numa noite de passagem de ano.
No mínimo uma comemoração original diga-se!
Assim, por revanche, decidimos fazer algumas tropelias na casa do “maricas”. No entanto o tipo nada tinha de relevante, em casa só bugigangas. Recordo que levamos somente alguns baralhos de cartas e por pura maldade os seus documentos, no fundo era uma vingança pela patranha que nos tinha arranjado. Para além de tudo o mais que aconteceu como o seu sexo oral coletivo.
Combinamos encontrar-nos no cacau da Ribeira, e então fomos desaparecendo de casa do individuo, uma a um, tendo ficado para o fim o Luis Costa.
O que ocorreu entretanto entre os outros elementos e o alfaiate, até hoje ninguém sabe, eu sei que comigo e o “Quim-Zé” ocorreu o descrito acima, e também que saímos ao mesmo tempo da casa.
E assim pela primeira vez e única na minha vida, um homem se pode deliciar com o meu órgão genital.
Fui também eu, que acabei por destruir, os seus documentos, com o meu inseparável canivete suíço, e deitar os recortes numa ‘sargeta’ junto dos armazéns do Conde Barão, local aonde viemos parar depois de uma intensa correria por becos e ruelas, sempre a descer, tendo como ponto de referencia, que caminhando sempre para baixo, pelas ruas e becos do Bairro Alto, isso nos afastava cada vez mais da Rua da Atalaia e assim acabaria por encontrar-se o rio.
Sobre esta noite existem fatos curiosos, que ainda hoje são por certo recordados sobre este inesperado acontecimento. O grupo só voltou a estar todo reunido cerca de uma hora depois, e até hoje jamais alguém voltou a tocar nesse assunto.
Jogamos varias vezes ás cartas com os dois baralhos trazidos da casa do “maricas” da Rua da Atalaia, e nunca perdemos um conjunto de jogos de sueca, até parecia que as cartas estavam de certa forma enfeitiçadas, sendo que era o único momento em que de alguma forma se referia indiretamente á Rua da Atalaia.
Ao longo da minha vida, recordei algumas vezes este episodio, chegando a rir sozinho com a ingênua situação, pelos motivos bem óbvios e fora do comum.
Acho que até hoje, no máximo por 2 ou 3 vezes, e sempre de forma superficial, o mesmo foi referido em conversa breve entre mim e o “Quim-Zé”. No entanto com os outros elementos, foi como que um segredo de todo o grupo, guardado a sete chaves, até ao dia de hoje. Um segredo que entendo hoje revelar, pois no meu entendimento não deve envergonhar ninguém, pois que no fundo serve como alerta para a juventude de hoje, e de outras gerações para estarem muito atentos para este tipo de situações, e também para nós próprios que como experiência única; nunca mais a vamos esquecer.
Voltei a passar pela Rua da Atalaia, 176, mais algumas vezes na minha vida, ao longo dos anos, mas sempre espaçado no tempo.
Nunca mais voltei a encontrar lá instalada uma alfaiataria, e por muito estranho que possa parecer, acho que até já foi um restaurante. Hoje em dia nem sei mais o que por lá esta instalado, e com o passar dos anos chego por vezes a ter duvidas sobre o local e mesmo o numero da porta, mas não duvido de forma alguma que naquela noite nos aconteceram fatos muito fora do comum.
Também devo referir que; caso o alfaiate se cruzasse comigo na rua no dia seguinte, eu jamais o iria conseguir reconhecer. Aquela noite foi assim como um momento alienado da minha vida, algo que eu sei que realmente aconteceu, mas que nem eu sei explicar como foi possível ter acontecido, acho que pode ter sido um efeito tipo “Absinto!...”
O Luis Costa tinha realmente um dom muito especial de atrair os “maricas”, e fosse porque fosse a razão, eles adoravam falar com ele, e ele brincava seria e largamente com eles como nesta singular situação, daquela inesquecível passagem de ano, no inicio dos anos 80.
Aquela era uma época de loucos e de loucuras. Era a nossa juventude na sua plenitude, e como que se conseguia entender e seguir á risca o que Akira Kurosawa definia numa das suas mais celebres frases:
“Num mundo louco, só os loucos podem ser considerados sãos”
Os anos passam na contagem do tempo das nossas vidas, as memórias, simplesmente as memórias ficaram e a paz que transporto hoje no meu peito é bem diferente da paz que eu um dia sonhei.
Hoje paz é sinônimo de tranqüilidade de aceitar os outros como são. É saber admitir que nem sempre tenho razão, e mesmo que a tenha devo referenciar isso sem, no entanto, brigar por essa razão. Ter paz hoje, com mais de quatro décadas e meia de vida é não querer que os outros se mobilizem apenas para nos agradar, é respeitar as opiniões contrarias sem hipotecar as nossas.
Ter paz hoje é saber e conseguir recordar aquele tempo em que as pessoas se falavam umas com as outras, e não simplesmente com as vozes eletrônicas dos celulares dos dias de hoje. É conseguir reviver um pouco daquele tempo em que as pessoas se cumprimentavam nas ruas e em que se visitavam em casa, quase sempre depois do jantar, e em que vivíamos um tempo em que as criaturas humanas eram feitas de carne e osso e, sobretudo de sentimentos.
Há como gosto de ainda imaginar que é possível reviver nos dias de hoje aqueles tempos em que ainda existiam famílias, porque ‘família’ hoje, como que não existe mais.
Hoje; cada um alimenta-se á hora que mais lhe der na gana, hoje cada um ausenta-se para o mundo que cria; hoje cada um esta sempre numa outra situação diferente do outro e aprende assim a jantar sozinho, a falar sozinho e quase a amar sozinho. Hoje os filhos já não falam nem se misturam com os pais. Esse tempo de hoje, não é o meu tempo, nunca será o meu tempo, pois que eu não me consigo ambientar nesses aspetos a estes novos tempos.
Nem sempre somos nós que escolhemos a forma como se viver, isso hoje eu sei! Todavia a decisão de viver, de uma forma e modo, a vida, essa sim, sem duvida alguma é ainda a nós felizmente que cabe decidir. A decisão de viver como derrotados ou vencedores só poderá ser nossa. Eu pela minha forma de estar na vida, posso ser o ultimo, o único, o que fica só, mas para mim serei sempre um vencedor porque não abdico da minha personalidade, nem pela lei das balas.
Com o correr do tempo, as distancias geográficas e os afazeres do dia-a-dia, aliados ao destino de cada um, tudo isso nos conduz muitas vezes á criação de separações pessoais em termos de convívio, que umas vezes se transformam em definitivas e outras vezes simplesmente em temporais. Estas separações dependem da nossa capacidade pessoal, para conseguir apesar das distancias manter fora de qualquer possibilidade de destruição os laços de amizade e lealdade estabelecidos ao longo do tempo entre os indivíduos.
Todos nós temos a capacidade de ficar ao longo do tempo com amigos e conhecidos introduzidos nas nossas vidas. Todos nós temos bons amigos, sejam muitos ou poucos, em quantidade e ou qualidade, e também temos os amigos que vão ser sempre verdadeiramente amigos.
Na nossa Rua, na Grão Vasco, o Joaquim Núncio, “Quim-Zé” é ainda hoje um dos meus verdadeiros melhores e grandes amigos, alguém que até hoje não falhou em termos de amizade e lealdade, em tudo aquilo que para mim é essencial encontrar e manter temporalmente numa verdadeira amizade.
São anos e anos, décadas de convívio sempre pautado por respeito mutuo e uma desinteressada amizade.
Conseguir ainda hoje relembrar a importância que teve um dia, na década de 80 do século passado, como o tempo passa, ter convidado o “Quim-Zé” para ser uma das minhas testemunhas no meu casamento civil com a Fernanda. Um fato da minha vida para o qual queria o máximo sigilo, pois nem os meus pais nem os dela chegaram a tomar conhecimento em devido tempo da sua realização, sendo somente confrontados com o fato já consumado, meses depois.
Por ironia do destino, a avó do “Quim-Zé” faleceu na madrugada desse mesmo dia 2 de Setembro de 1988. Devido a esse fato ele acabou por não poder ser minha testemunha, é assim como que uma magoa pessoal, uma injustiça da vida e do destino, que foi cometida sem que fosse possível a sua reparação. No entanto, e simplesmente porque os fatos desse tipo não alteram o curso das relações pessoais, ele era e é ainda hoje um dos meus melhores amigos, e ainda por cima um dos que na época estavam geograficamente próximos e hoje esta a muitos milhares de quilômetros de distancia, mas nada disso também afeta a amizade.
No entanto, mentalmente, para mim o “Quim-Zé” é uma das testemunhas do meu primeiro casamento pelo civil, só faltou assinar os papeis, estar lá fisicamente pouco importou, pois todos os outros meus grande amigos também lá estiveram da mesma forma, não fisicamente mas estiveram presentes simplesmente de uma forma mental.
Eu recorro muitas vezes a Fernando Pessoa, para justificar uma grande amizade:
“Não tenho realmente verdadeiros amigos íntimos, e mesmo aqueles a quem posso dar esse nome, no sentido em que geralmente se emprega essa palavra, não são íntimos no sentido em que eu entendo a intimidade.”
Na realidade eu tenho grandes amigos, mas não tenho mesmo amigos íntimos, desses a quem se possa dedicar todos os segredos e ambições da nossa vida. Não desses nunca tive, nem mesmo a mulher com quem vivi 18 anos, casado de papel passado, serviu como amuleto nesse campo da intimidade.
No que diz respeito a grandes amigos, pois sim, eu dedico-lhes toda a atenção, e no caso particular do “Quim-Zé”, pois ainda hoje, como amigo verdadeiro, tento acompanhar de certa forma as suas alegrias e vitórias, derrotas e desgostos, ser um amigo presente mesmo que a geografia não o permita.
Não posso nunca esquecer o quanto admirei e respeitei a sua luta e tenacidade na luta que levou a cabo no momento da doença grave que afetou a sua esposa, Mônica. Felizmente uma luta vencida, e em que eu de longe, de modo indireto, sempre psicologicamente torci, embora sabendo da dificuldade, mas acreditando sempre na vitória, alias como sempre faço na vida.
Da mesma forma admiro a sua constante luta profissional, a sua grande batalha do dia-a-dia por uma vida melhor para si e para os seus.
A minha relação de amizade e liberdade com os amigos verdadeiros, é algo indescritível e difícil de entender para o comum dos racionais, porque eu quando sou amigo, sou-o mesmo até ao fim.
Tudo isto para justificar que a lealdade é tudo o que separa um Luis Costa do Joaquim Núncio. E o que nos une para além dessa lealdade são os momentos especiais de uma vida, que nos transformaram aos dois em homens com destinos bem diferentes, mas com muitas memórias conjuntas.
Recordar as nossas idas com outros amigos, todos de bicicleta para a praia da Lagoa de Albufeira, com partida logo pela madrugada e as insolações que todo o grupo apanhava por se colocar a dormir o sol á chegada.
As namoradas que arranjamos ao longo dos tempos e que levávamos para os camarotes dos velhos cinemas Éden e Condes e os lanches de cumplicidade que se seguiam.
Relembrar a memorável noite em que no cinema Xenon, que ficava ali próximo da Praça do Chile, fomos assistir a mais um filme de um dos nossos atores preferidos, Chuk Norris, e as cadeiras eram reclináveis e como entramos na sala já com as luzes apagadas, ao sentar nas poltronas, desatamos aos gritos que estávamos a cair, provocando a risada geral em toda a sala.
Obviamente que as muitas idas ao futebol com as aventuras com todo o pessoal do grupo ficam indelevelmente marcadas nas nossas memórias.
A tão famosa passagem de ano, com o episodio do “maricas” da Rua da Atalaia. E a outra em que confraternizamos com o ascensorista do elevador que parte dos Restauradores para o Bairro Alto, ali bem junto da Rua da Rosa, onde fica a famosa casa de fados do Alfredo, e que faz parte integrante das nossas memórias dos anos 80 do século passado. Ai como o tempo passa tão rápido nas nossas vidas!
As muitas tardes a jogar bilhar e snoker na sede do Barreirense, vendo as betinhas entrar e sair, e o velho “Tonho” a contabilizar o tempo gasto, e a chamar á atenção para os panos, para os tacos, e para tudo o mais que lhe podia ocupar o tempo morto de alguém que por ali esta, mesmo para não fazer nada, no fim de uma vida em que já tinha feito muita coisa, como por exemplo ser o sócio numero um do Lusitano de Évora, e ninguém saber, que aquele velhote de meio metro de altura também tinha uma historia de vida, como todos aliás.
E os torneios infindáveis de ‘matraquilhos’ realizados na feira popular de Lisboa, ou na Costa da Caparica, e que acabavam, quando eu lhe conseguia ganhar por cansaço... pois que eram sempre em renhidos, e imagine-se chegavam quantas vezes a perto de uma centena de jogos, com as mãos em bolhas de tanto trabalhar os manípulos de cabo de madeira.
Os acampamentos na Costa da Caparica, sempre repletos de mil aventuras e acontecimentos imortais.
E claro, entre outros acontecimentos que se descatam e tornaram as nossas vidas muito mais ricas, famosa cena das salsichas da Costa da Caparica com o ‘Fome’ e as famosas e inesquecíveis ferias no Algarve.
Felizmente que a conjugação das nossas memórias ainda é razoavelmente boa e conseguimos em conjunto relacionar acontecimentos que por vezes já se nos turvam na mente.
Essas férias no Algarve, foram programadas ao milímetro, no entanto como quase sempre na vida, quando se programa muito, á ultima da hora o imponderável acaba por acontecer. Eu fui chamado para me apresentar na inspeção militar obrigatória, e logo precisamente na semana escolhida para o inicio das férias.
A melhor decisão que alguém pode e deve tomar no meio de algumas circunstancias negativas que surgem na vida, é a de continuar vivendo. Foi o que decidimos fazer, pois a vida somente acaba para os fracos e pessimistas.
Perante circunstancias adversas é preciso tomar decisões corajosas. Nenhuma crise dura para sempre na vida e tudo passa, inclusivamente as nuvens densas que ás vezes pairam sobre todos nós.
As circunstancias adversas que surgiram, foram e ainda hoje continuam a ser para todos nós uma lição, para servir como referencia nas nossas vidas futuras.
Por isso mesmo, precisamos continuar a lutar, sonhando e olhando sempre para o futuro, sempre olhando á frente e como em tudo na vida, o mundo não pára e o “Quim-Zé” e o José António lá partiram sem mim, com destino a Lagos, e ás suas férias.
Quando me acabei por reunir ao grupo, passados alguns dias, já o José António estava com dificuldades financeiras, mas como grupo sempre coeso e unido; lá fomos agüentando o “barco” até que o colocamos no comboio com destino ao Barreiro, com dinheiro suficiente para conseguir chegar á soleira da porta de casa.
Passamos a ser os ‘Robin Crusue’ do Parque de Campismo de Armação de Pêra, cada um na sua tenda, começando os dias com pequenos almoços reforçados com umas saborosas ‘sandes de bitoque’ e uma enormes canecas 1 litro de cerveja a acompanhar, no restaurante da alemã em plena praia dos pescadores, e depois seguia-se praia, praia e mais praia e vagabundagem todo o restante dia, sem horários, regras ou destinos estabelecidos, era como viver na ilha selvagem sem leis, porque éramos nós quem decidíamos as nossas tarefas e horários.
As noites eram sempre compostas de animações variadas, que chegaram a incluir uma noite de culinária, em que cada um de nós confeccionou uma metade de um frango. E como a imensa ‘jantarada’ que se seguiu foi regada com um recomendado vinho Lagoa de 15º, o que se deu foi uma enorme bebedeira incontrolável.
Eu consegui, sem saber até hoje como foi possível, ir tomar um ‘duche’, mas como o estado mental, devido ao excesso de álcool, não era dos melhores, tornei-me inconscientemente inconveniente, pois regressei á tenda tal como tinha vindo ao mundo, com os campistas do parque a aplaudir perante a minha admiração por tão súbita fama pois os estrangeiros aplaudiram com good, very good!, etc..., e os portugueses dividiam-se entre os muitos que corriam e colocavam as senhoras e jovens dentro das tendas e caravanas, e os outros que simplesmente sorriam, e eu sem conseguir perceber nada do que estava a acontecer, caminhava de regresso á tenda na maior das calmas do mundo, saudando a todos, como um candidato a alguma eleição próxima.
O “Quim-Zé” não conseguiu entrar no desfile nudista, ficou deitado junto da sua tenda, a tentar recuperar da “borracheira”, montando a esteira e o saco cama de forma estratégica para lhe possibilitar dormir para um lado e ir vomitando para o outro.
Depois de varias horas a dormir, e ao acordar com uma das maiores ressacas da minha vida, graças aos efeitos dos 15º do famoso vinho Lagoa, tinto, tomei então consciência do que tinha realmente acontecido.
Eu conseguira deslocar-me até aos lavabos do Parque e vomitar no WC, depois um pouco mais recomposto tomara um enorme ‘duche’ de água fria no exterior, e de forma inconsciente regressei todo nu com os calções na mão, desfilando como um nudista convicto por todo o parque, até conseguir encontrar a tenda. Sim! Conseguir encontrar a tenda é o que ainda hoje estou para saber como realmente pode acontecer devido ao meu estado altamente ‘copofonico’. Daí os aplausos e apupos da numerosa assistência, onde se inclui toda a freguesia de um dos bares do parque, junto do qual tive obrigatoriamente que passar.
O “Quim-Zé” ficou junto da tenda e passou a noite em romaria mudando a esteira e o saco cama de local, para poder ir vomitando e o mesmo tempo fazendo montinhos de terra e areia para tapar os indícios, mas no entanto no dia seguinte toda a área em redor da sua tenda mais parecia que tinha recebido a visita de uma toupeira, tantos os montes que se podiam encontrar.
Recordo que andamos doentes uns bons dois ou três dias, sem poder ouvir falar em vinho ou em carne de frango. Foi terrível, foram dias de sacrificada recuperação.
Mas essas memoráveis férias também foram um teste á nossa capacidade de poupança e gestão financeira. Assim com o decorrer dos dias perdemos totalmente a noção dos dias da semana, e não mais sabíamos quando era segunda ou sábado. Como tínhamos o nosso dinheiro, o orçamento de férias depositado numa conta minha da caixa econômica postal, que não funcionava nos fins de semana, acabamos por ter problemas de liquidez financeira num fim de semana.
Um sábado, pela manhã, lá fomos como dois tontos á estação local dos correios, para levantar dinheiro, imaginando que seria um dia normal da semana. Depois de alguma espera junto da porta, perguntamos a um transeunte se os correios estavam em greve, perante o seu olhar de grande espanto; respondeu:
“Mas afinal estão a brincar ou que?!... Hoje é sábado, e os correios não abrem ao sábado!... Não sabem já disso!...”
Quando acabou de nos dar essa noticia, olhamos um para o outro, atônitos, pois para além do ridículo da pergunta, agora estávamos reduzidos a uns míseros escudos para passar o fim de semana, com todo o restante dinheiro depositado e impossível de movimentar antes de segunda-feira.
Foi assim que após se ter juntado todas as disponibilidades financeiras, chegamos á conclusão de que teríamos que resistir dois dias comendo pão com atum e bebendo uns refrigerantes não muito caros. Idas a restaurantes e bares estavam vedadas nesses dias, e outras aventuras, com despesas fora do reduzido orçamento, estavam também fora de programação por dois dias.
Foram dias terríveis, e nós para tentar criar um cenário de imaginação de rápida passagem do tempo, fazíamos sandes pela manhã e rumávamos todo o dia para a praia, onde ficávamos quase do nascer ao por do sol.
Na segunda-feira, montamos acampamento pelo fim da madrugada á porta da estação postal, para sermos os primeiros, mas a ironia do destino e do calendário fez com que esse dia fosse feriado.
Assim, passamos mais uma vergonha, ao questionar a razão da no abertura da estação postal, e claro mais um dia de privações e de autentico ridículo, perante a situação de ter que perguntar a razão dos correios fechados, obtendo mais uma vez a indesejada resposta.
No dia seguinte lá estávamos novamente, bem cedo para fazer o levantamento do nosso dinheiro, acho que quase dormimos á porta da estação postal para em seguida poder ir comer um enorme bife com batatas fritas e ovos, mais parecíamos dois animais esfomeados ás 9 horas da manhã a comer como se fosse hora de almoço. E enquanto nas mesas em redor se tomava o pequeno almoço, nos matávamos a fome de três dias de abstinência, perante os olhares admirados de todos os outros clientes do local.
Nesse mesmo ano, o José António resolveu deixar uma herança para nós, assim no meio das suas investidas alcoólicas tinha andado a zombar com um pescador, que aparentemente devido ao seu vestuário parecia gay.
Geralmente acabamos por esbarrar em alegados fantasmas criados ao longo do tempo, e foi isso que nos aconteceu.
Uma manhã; estivemos a observar atentamente um individuo pujante de força a puxar totalmente só um barco para terra. Ele que já nos tinha encontrado varias vezes na companhia do José António, resolveu questionar onde estava o nosso amigo, pois tinha umas contas a ajustar com ele. Acabamos por ficar amigos dele e descobrir que afinal era um mulherengo terrível, e possuía uma compleição física de verdadeiro “Hercules”. Por outro lado felizmente que a alegada herança que nos fora deixada, só mesmo o José António poderia reverter. Acho mesmo que até hoje ele, por essa ou outra razão, nunca mais voltou a Armação de Pêra.
Nesse mesmo ano resolvemos terminar, o período de férias, já mais próximos de casa, em Sesimbra, mas como o comboio vindo do Algarve não tinha ligação em Setúbal com o autocarro, acabamos por ter que ficar a passar um noite inteira a dormir ao relento na via publica, deitados nos sacos cama á porta da empresa rodoviária, situada naquela época em frente ao quartel dos bombeiros de Setúbal, aguardando pela oportunidade de embarcar num autocarro do qual nem sabíamos o horário.
Foi mais uma noite incrível, passada ao relento, e em que mais parecíamos dois mendigos deitados na via publica, sob esteiras e dormindo em sacos cama.
Digo dormindo, mas na realidade pouco, ou nada dormimos nessa noite, com o constante vai e vem de pessoal a incomodar a nossa tranqüilidade.
A própria policia teve também a mesma visão de dois mendigos dormindo na via publica, e varias vezes durante a noite o carro patrulha fez visitas para nos questionar sobre a natureza da nossa inusitada estadia naquele local, e naquele desplante hoteleiro.
Os bombeiros, pensando que nós éramos alguns deserdados da sorte da vida, também queriam ajudar. E nós que apenas queríamos dormir descansados e, estar o mais tranqüilos possível, a aguardar o transporte, não conseguimos de forma alguma estar tranqüilos, e passamos toda a noite a ser incomodados. Ironia do destino, que nem na via publica alguém consegue estar sossegada, mesmo passando por mendigo.
Mas tanto no imaginário como na vida real, tantas vezes somos obrigados a exercitar a resistência diante de determinadas mudanças ou experiências que representam na verdade enormes retrocessos.
Os acontecimentos comuns com o “Quim-Zé”, por si só constituiriam uma narrativa incrivelmente extensa, não posso, no entanto, deixar de nomear que ao longo dos anos tanto ele como outros amigos não se tem medido pelo que tem ou não tem em termos materiais. Pelo que são ou não são. Os meus afetos são os mesmos, seja um rico ou um pobre, um feio ou um bonito. Tenho os meus amigos de infância e juventude que quer morem longe ou perto de mim em termos geográficos, quer não os veja anos a fio ou os veja quase todos os dias, são os meus amigos. Aqueles com que tento não perder o contato, enfim, são os laços afetivos que não acabam nunca mais entre nós.
Os amigos conhecem-se verdadeiramente por aquilo que transmitem sem falsidade em cada momento, e tantos outros como o “Quim-Zé”, ao longo dos tempos nunca conseguiram demonstrar ser falsos amigos ou desleais.
A vida é o hoje, a felicidade que conseguimos viver e nunca um projeto do amanhã, pois se construímos o hoje com amor, na verdade, na sinceridade, na total falta de interesse material, então estaremos sem duvida sendo felizes enquanto o tempo, o nosso tempo de vida o permitir.
As recordações que restam, as memórias que povoam a minha mente sobre os anos passados na nossa Rua, no nosso centro do mundo daqueles anos passados na Rua Grão Vasco, contribuíram de forma determinante para que; perceba que grande parte, uma enorme parte da minha família são, hoje, e sem sombra de alguma duvida, os meus Amigos verdadeiros, que são pessoas especialíssimas e que sem eles eu não existo.

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