quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

XXIII - O CAFÉ DA NOSSA RUA

Não pretendo de forma alguma enjeitar a terceira idade que se aproxima com palavras bonitas nem com frases colhidas nos jardins do paraíso da vida. Para mim, nascer e viver são presentes do destino e só dependem de nós próprios, obviamente com a maior ou menor sorte de uma vida longa e bem vivida, o que reconheço é privilegio de poucos e só fica velho quem não morre miúdo, tanto no viver como no pensar.
A essência da vida esta no amor e na amizade. Li há tempos que Afrânio Peixoto definia que o amor onipotente é dádiva e conquista, e não imposição ou dever. A felicidade de quem vive, independentemente da sua idade esta no amor e desinteressada amizade.
Para se conquistar uma velhice minimamente tranqüila é necessário estar preparado desde a juventude em termos psicológicos, de contrario pode-se sofrer um terrifico impacto negativo com efeitos desastrosos. Conheço muitos, inclusivamente familiares, que não suportaram e quase enlouqueceram, pois o maior inimigo do idoso é sem duvida a solidão o abandono a ociosidade.
Realmente, aos 45 anos, já mais para os 46 que outra coisa, e ainda não me podendo considerar um idoso, tenho plena convicção de que; morrer não deve ser um bom negócio, para quem morre obviamente, se bem que o assunto seja deveras polemico, pois não tenho conhecimento de que algum tenha regressado. Também não tenho duvidas sobre a não existência da vida eterna, embora considere muito interessante a doutrina Espírita, que embora dogmática, como alias todas, tem aspetos interessantes para se pensar e debater. A única certeza que realmente de forma convicta tenho sobre o assunto, é que vale a pena viver em qualquer idade e em qualquer circunstancia, desde que claro a qualidade de vida tenha as necessárias condições em temos físicos e psíquicos.
Desde sempre fui um acérrimo defensor da eutanásia, em casos extremos, em termos de sofrimento físico, e irreversibilidade de determinados casos clínicos. Não mudaria de forma alguma agora a minha opinião, somente porque estou a entrar na chamada idade da reta final, ou na segunda parte do jogo da vida, em que normalmente não existe prolongamento nem a marcação de grandes penalidades, e quantas e quantas vezes o jogo termina por morte súbita.
Vem tudo isto a propósito da metamorfose da juventude de hoje, que transformou a maioria dos jovens em dependentes de algo, retirando algum sentido real e pratico aos hábitos dos jovens da minha geração que eram criteriosos e críticos nas escolhas em termos de ocupação dos seus tempos livres. As alternativas por nós próprios criadas eram tantas que o difícil era conseguir ter tempo para levar a efeito todo o nosso muito diversificado ‘modos vivendi’ adotado.
Os cafés e os clubes eram bem diferentes, pois constituíam locais de reunião para convívio e para intercambio entre gerações, espelhos da sociedade para aprendizado direto da vida, em redor, quantas e quantas vezes de uma mesa de 4 parceiros entre um jogo de sueca, ramy ou de dominó. Era nessas mesas que surgiam as importantes conversas da vida, do desporto, da política da educação ou da simples falta dela, e na maioria das vezes das dificuldades familiares do dia-a-dia, de certos chefes de família, que assim deixavam transparecer para o comum cidadão; que a vida não é fácil, mas deve ser o melhor aproveitada que se possa.
Poderia imaginar-se que aparentemente uma tarde de jogo era um mero instrumento da chamada “batota”, mas nada mais errado na escola da vida. O que de mais positivo se retirava não era o resultado e o simples gosto pelo jogo, mas o período que mediava entre dois jogos, os diálogos e brincadeiras e acima de tudo os conhecimentos para o futuro que nesses bocadinhos de convívio se conseguiam recolher.
Á luz dessa indagação, absolutamente pertinente, comecei a intuir que, muitas vezes mais importante que estar em jogo era estar junto das mesas de jogo e captar o muito de positivo que se ia passando em seu redor.
Já nessa época achava importante a estimulação da função intuitiva, como fator de antecipação que permite planejar e tomar decisões corretas, somente tendo como base dados incompletos.
Sabemos todos, que não existe qualquer meio cientifico de medir ou avaliar a maior ou menor capacidade de intuição de determinado individuo, no entanto está mais do que provado que ela está presente de modo constante no nosso dia-a-dia, e quem diz que não a tem é porque simplesmente ainda não sabe como tornar-se receptivo, para conseguir percebê-la.
Cientificamente, no entanto, está mais do que provado que a intuição resulta da comunicação entre os hemisférios direito e esquerdo do cérebro, e que essa interação acontece no inconsciente segundo um processo que escapa á lógica e á forma una do pensamento humano.
Estar sempre aberto e receptivo á aquisição de novos conhecimentos, permite um maior numero de associações e conclusões, mesmo que não seja pela mente lógica e analítica.
O café da nossa rua, como carinhosamente foi batizado, assim sem mais, sem nome era um local de pura intuição, e durante muitos anos um local de vida, muito embora existisse o entendimento de que a morte deve ser entendida como algo supremo, e que deve sempre ser insolúvel. Esta simples ocorrência continuava a ser para muitos de nós como que um mistério da nossa existência.
Para mim, que verdadeiramente nunca fui católico, nem apostólico, nem nasci em Roma..., embora tenha um espírito religioso e ambientalista, á minha maneira, adorando por exemplo; o mar e o sol, e não tendo qualquer religião, e assumindo também um corte total em termos de prática religiosa, com a única forma religiosa que verdadeiramente conheci, o catolicismo, aos 7 anos de idade. E sendo hoje mais do que um agnóstico um verdadeiro Ateu. A morte e a vida são para mim temas importantes, desde que tomei conhecimento e consciência aguda e dolorosa da nossa caducidade existencial, e da fragilidade e fugacidade de todas as coisas, em especial do tempo, e como também já li pensado e escrito por alguém de que não recordo o nome:
“Nós somos e não somos, porque estamos sempre vindo a ser!”
Nesses anos 80 nós estávamos sempre a ser e a vida corria célere, tendo como um dos nossos centros gravitacionais o café da nossa Rua, o café da Grão Vasco.
O local teve ao longo dos tempos vários donos, ou arrendatários, e ainda lá continua a funcionar no mesmo local, se bem que funcionando obviamente noutros moldes e claro com muitos novos freqüentadores e poucos velhos conhecidos.
Quando o comecei a freqüentar, nos idos anos de 70, o dono ainda era o “Pilicas” a que se seguiu o Luis, depois as referencias foram passando incluindo as “Mijonas”, o Carlos “Marmitas” e por mais uns quantos nomes que a memória muitas vezes apaga, em termos de referencia, mas não em termos de recordação.
Era sem duvida, conjuntamente com o pequeno supermercado, o “lugar” da irmã do Pedro ‘Super’, o centro do bairro, era o pólo aglutinador da rua, o ponto de encontro para beber um café, uma imperial, para jogar uma partida de sueca ou dominó. Era o local ideal para se combinar um encontro para partir para mais um jogo de futebol. Para mais uma das muitas idas ao cinema, ou até para uma animada visita a um dos muitos locais de “perversão” que o distrito tinha ao dispor, nomeadamente para as bandas da Moita, no Correr e Água, Palmela ou Setúbal.
Era também um local de risota, fosse pelos concursos noturnos de “peido”, com que um dos mais jovens se deliciava a apresentar as suas extraordinárias habilidades e capacidades intestinais, ou pelas aventuras que acabavam por ser ali contadas e recontadas, em especial aos que por esta ou aquela razão não tinha podido participar. Ali tudo era relatado com todos os pormenores, quantas vezes até altas horas da madrugada, e também por alguns petiscos, como passarinhos fritos ou caranguejos cozidos, degustados aproveitando o consumo das bebidas do próprio café.
A rivalidade clubistica tinha também por ali um valor incrível, e muito embora o constante duelo Benfica – Sporting, fosse uma arma temível, com uns a desejarem todo o mal possível e imaginável aos outros, em termos de resultados desportivos claro, e mesmo com outros clubes de menor expressão clubistica no local, como o Futebol Clube do Porto, a merecerem alguma atenção, e mesmo com todos os ódios pessoais de estimação, que se acabavam por gerar, chegando quantas vezes quase ao limite do razoável, a dois passos muitas vezes de vias de fato, passado algum tempo tudo voltava á normalidade, pois a “família” do café não podia nem sabia viver desavinda, e tirando alguém mais extremista, como por exemplo o “Bito” que chegava a estar meses sem trocar palavra com alguém que maliciosamente o tivesse gozado, em algum resultado menos positivo do seu Benfica ou do Casa Pia Atlético Clube, mais ninguém guardava rancor de ninguém.
Reconheço que pessoalmente, pelo menos, em três ocasiões me excedi no contentamento com vitórias desportivas saborosas. E nessas vezes realmente deixei á beira da explosão adeptos contrários, que eu fazia questão de gozar, isto para não falar das muitas vezes em que por animadas festas de comemoração de derrotas adversárias, se acabavam por patrocinar discussões monumentais. Mas não mais do que isso, palavras, e mais palavras...
Dessas saudosas recordações retenho na memória, o dia saboroso, em que o Benfica jogou e perdeu em pleno Estádio da Luz, uma final européia com os Belgas do Anderlecht. Eu não cabia em mim de contente, e realmente não resisti e festejei o fato como se fora autentico adepto belga, abrindo inclusivamente uma garrafa de espumante, de pé em cima de uma das mesa do café, perante os aplausos de alguns Sportinguistas e Portistas presentes, e a raiva total e incontida de alguns Benfiquistas, que vertiam muitos deles lagrimas pelo descalabro da sua equipa, em peno estádio caseiro.
Eu assisti a todo esse jogo no próprio café, e desde o primeiro segundo sempre a torcer pelo clube Belga, com uma garrafa de espumante colocada numa das arcas frigoríficas do Carlos “Marmitas”, já prometida para festejar a derrota do Benfica, o que veio a acontecer.
O acordo, para poder assistir naquele local, como adepto do ‘contra’, incluía a dádiva da garrafa para os Benfiquistas presentes, caso ganhassem, o que no final não veio a acontecer, e se o Carlos “Marmitas” era Benfiquista “Lampião” ferrenho, mas não estava disposto a perder a clientela dos “Lagartos”, pois negocio é mesmo negocio.
Recordo também a festa imensa que fiz, no final do jogo Portugal – França, do Campeonato Europeu, realizado em França, porque nunca até hoje apoiei a seleção portuguesa de futebol, e também porque Michael Platini era na época para mim o maior jogador do mundo, e também um dos meus maiores ídolos desportivos, ainda mais porque em seguida a essa competição foi jogar para a minha tão querida Juventus de Turim.
E claro a festa maior que recordo, foi aquele mágico dia de 1982, em que a Itália derrotou o Brasil, no famoso jogo no Estádio de Sarria, e em que eu vinguei a humilhação de 1970. E logo eu que só via a Itália Campeã do Mundo desde o inicio da competição, e contra tudo e contra todos a defendia, perante todo o mundo que não se cansava de gritar Brasil!... Brasil!..., e afirmarem e reafirmarem que o Brasil iria ser o campeão com uma perna ás costas.
Nesse dia memorável o Brasil realmente retornou a casa sem titulo nem gloria.
Eu afirmava sempre, perante a risota geral, que quando jogassem com a experiente seleção Italiana, acabaria toda aquela cantoria e euforia, e assim veio a acontecer.
Nesse dia eu chorei de orgulho e alegria, pela exibição de querer e determinação, aliada a uma vontade tremenda de vencer de todo um conjunto, e em particular pelo espetáculo aparte chamado Paulo Rossi. E também daqueles dois velhinhos o Zoff de 42 anos na baliza da “Squadra” e também do Presidente Sandro Pertini, que mais parecia um garoto, vibrando de incontida alegria. Mais tarde confessou que sem espírito de segundas leituras, mas também ele havia vingado aquela sua triste tarde de 1970 no México.
Dias depois, no jogo da final, eu tinha para mim que já éramos Campeões, como o viemos a ser, pois a verdadeira final fora aquele jogo contra o Brasil.
Verdade se diga que até hoje acho que deveríamos ter ganho no México, e quem sabe talvez perdido em Espanha, mas o destino faz a hora.
E foi como um louco de 20 anos, que festejei durante 4 ou 5 dias seguidos, em pura e descontrolada alcoolemia, sem nenhuma noção, nem do que bebia ou pagava. O fato mais curioso foi que quem antes apoiava o Brasil, na sua maioria passou a apoiar a Alemanha e depois da vitória da Itália na final, então já todos apoiavam a “Squadra Azurra” ou melhor dizendo; é muito bom estar ao lado dos vencedores e sobretudo poder apoiar e gozar das muitas rodas de bebidas que eu paguei.
Que tempos esses do Mundial de Espanha, aquele Mundial do Naranjito, que alucinação, que loucura incontrolável, poder gritar bem alto:
Somos Campeões!...
Somos Campeões!...
E olhar para as caras apalermadas, sobretudo dos Benfiquistas que tinham andado a fazer macumbas, mezinhas, rezas e campanha doentia em apoio da Seleção Brasileira, e depois da tragédia de Sarria, tinham virado Alemães, alguns até parecia que tinham nascido em Munique, ou que era Alemães adotados quase desde pequeninos!...
Mas apesar de tudo, eram tempos de tolerância controlada, e muito embora as muitas ameaças que sofri, a que eu respondia de um modo algo louco, como um verdadeiro “Tifosi Azurro” de 20 anos, ninguém ousou agredir-me fisicamente, e muito menos verbalmente, pois eu me sentia impenetrável aos ataques, fossem eles quais fossem.
Claro que ainda recordo os muitos avisos solidários e amigos; por exemplo, do “Quim-Zé”, dizendo-me que alguns andavam doidos comigo, e que tivesse cuidado, pois nem ele sabia como agüentavam tanta provocação minha.
Na realidade no dia da vitória sobre o Brasil, eu vi pessoas a chorar á minha frente, como se fossem crianças castigadas por alguma traquinice, enquanto eu festejava efusivamente, que nem um louco, mas fazer o que; a festa é sempre para os vencedores e as lagrimas para os derrotados.
Eu não esquecera a tristeza que por mim se abatera 12 anos antes, e que me fez andar muitos dias como se fosse um astronauta fora de órbita.
Hoje reconheço que perante as atitudes tomadas, devo ter tido muita sorte, ou então seria muito querido e respeitado pela minha; frontalidade, e conhecida coragem em defender sempre as minhas idéias, e naquele caso particular a Seleção Italiana.
Eu sempre assumi frontalmente as minhas posições e reconheço que isso cai sempre muito fundo nos adversários, pois acabam por admirar de certa forma a minha firmeza de personalidade e de caráter.
Curiosamente; passados mais de vinte anos, o mesmo veio a acontecer aqui mesmo no Brasil, no decorrer do ultimo Campeonato do Mundo, em que uma enorme bandeira da Itália com três metros, e que me acompanha á muitos anos, em todas as deslocações que faço pelo mundo, esteve pendurada no exterior da minha casa, em local bem visível, durante todo o campeonato.
Também no dia da final, e com mais uma vitória nem sequer faltou festa rija, com churrasco e tudo o mais que um homem feliz tem direito, para obsequiar mais de trinta pessoas, incluindo Brasileiros, e até adeptos da Seleção Francesa que aceitaram o meu convite para assistir á transmissão televisiva da final na minha casa. Mais uma vez festejei em cima da mesa, enrolado na bandeira tricolor, e também mais uma vez com uma garrafa de espumante na mão. E também mais uma vez gritei bem alto:
Somos Campeões!
Somos Campeões!
Mas o café da nossa Rua não era só isso, era muito mais do que isso, era também local de animação para se observar os comportamentos sociais e a importância que alguns davam a pequenas coisas da vida, que para si tinham uma importância monumental.
Que dizer da extraordinária importância dada pelo saudoso Saul a um velho automóvel, que foi o seu primeiro carro, e que deve ter comprado com muito esforço. E sobre tudo; ao recorde da viagem mais curta, detido por ele próprio, ao conseguir sair do passeio fronteiro á sua casa e a um dos lados do café, que distava cerca de uns 20 metros da entrada principal do café, dar a volta á rotunda e estacionar á porta do café. Depois de um simples café ou uns joguinhos de cartas, nova viagem de regresso pelo mesmo trajeto, até ao passeio fronteiro á sua casa. Essas eram as maravilhosas viagens automobilísticas do Saul, pouco mais do que uns épicos cem metros.
Claro que existe sempre uma exceção, e acabou por acontecer a grande oportunidade de uma viagem digna desse nome, no dia em que resolveram deslocar-se ao Algarve, para disputar um jogo de futebol, e convenceram o Saul de que a sua viatura tinha todas as condições técnicas para poder agüentar a realização da grande viagem.
Só o meu amigo Pinto, que agora mora lá para o Norte, para os lados da terra do bom presunto, em Chaves, para convencer o ‘Gordo’ Saul das grandes possibilidades da sua viatura.
Pois se estava capaz para fazer 100 metros na rua, como não poder fazer umas centenas de quilômetros?!
O jogo estava marcado em Tavira, para se realizar durante a tarde, a saída da comitiva foi feita de manhã bem cedo, e o resultado da deslocação começou a ser sentido bem cedo, pois antes de conseguirem chegar á Moita, o carro do Saul, já tinha conseguido avariar por duas vezes.
Depois de muitas aventuras para ser arranjado para assim puder seguir a gloriosa viagem, acabaram por conseguir gripar o motor perto de Ourique, portanto o fato histórico é que agüentou metade da viagem de ida. Desta forma terminaram a viagem já de noite cerrada, com o jogo a disputar-se depois das 22 horas, obviamente depois de jantarem, pois nessas coisas o grande amigo Pinto não gostava cá de brincadeiras com o estomago, e não foram poucas as vezes a que assisti á abertura de bares e restaurantes para nos servir comida já a altas horas da noite.
Depois de um jantar bem comido, e melhor regado, claro que o resultado desportivo não foi nada agradável para as nossas cores, e será bem melhor nem revelar o placar final.
Escusado será também dizer-se que já adivinharam que o Saul perdeu nessa viagem o seu “magnífico” automóvel, mas em contra partida ganhou uma participação numa das maiores aventuras da sua vida.
Era também através dos vidros das montras do café que nós delirávamos com a imagem do pai Peleja, cobrindo carinhosamente, com um cobertor, o motor do seu carro, outra preciosidade automobilística digna de um museu.
Quando era questionado sobre a razão de tamanha atenção com o motor do seu “Ferrari”, logo alegava que se tratava de uma proteção extra por causa do frio, para não se estragar o motor com a umidade, claro que respeitávamos a opinião de um Alentejano, e como não respeitar a opinião, ainda por cima de um Alentejano tão experiente em automóveis...
Os automóveis eram a perdição de alguns vizinhos do café da nossa rua, e para nós, devido á sua atuação, motivo de largo gozo, como por exemplo; as limpezas diárias do “Chico Aroles” ao seu VW Carocha, de cor preta, todo cromado, que todos os dias tinha direito a um banho e limpeza geral, com polimento dos cromados incluído. Para nós, mas em especial para o “Chico Aroles”, aquele carro mais parecia um Mercedes, da Presidência da Republica, tantos os cuidados diários com a viatura.
Mas o admirável mundo dos automóveis da rua, e que podia ser observado das montras do café não se ficava por aqui.
O que dizer do Anglia Fascinante do “Alentejano”, que servia para tudo, desde veiculo de transporte exterior de mobílias, em alguma mudança de residência, ou também de transporte, para a malta se deslocar a algum Bar ou Bordel, onde o “Alentejano” era presença assídua, e muito respeitada.
Sempre que se deslocava ao Lavradio em férias ou para gozar um simples fim de semana, ou feriado, a sua presença constituía desde logo um acontecimento fora do comum.
Segundo ele as visitas aos Bordeis justificavam-se porque ele tinha por lá umas 4 ou 5 mulheres apaixonadas por si, á sua espera, era um homem de muito carisma, claro que ele queria dizer que tinha algum dinheiro, e que elas queriam aproveitar para ficarem com algum, em troca de uns minutos de interesse.
Mas a grande aventura automobilística do “Alentejano” foi no dia em que já bem alcoolizado, ele conseguiu capotar o carro numa das ruas mais movimentadas do Barreiro, em plena Rua Manuel Pacheco Nobre, vulgarmente conhecida por Rua Brás, mesmo defronte ao Clube 31 de Janeiro e do Restaurante do “Pilicas”.
Quando regressou com o ‘tejadilho’ do carro todo amolgado e enterrado no seu interior, e sem vidros, a sua explicação foi que a causa tinha sido uma derrapagem, devido ao piso defeituoso da rua, a culpa era somente; adivinhe-se de quem: somente da Câmara Municipal do Barreiro...
Claro que foi a risota geral quando contou a aventura, e também quando queria colocar o carro com o amassado ‘tejadilho’ em ordem. A operação foi feita a poder de marretadas, com um martelo envolvido num paninho, para não riscar muito a chapa, até parecia um escultor a moldar a carroçaria do carro a seu gosto.
Eu sempre que vejo um recente anuncio da Peugeut, com a moldagem de um carro na Índia, logo me lembrava do Alentejano e das suas esculturas com o seu martelinho...
A loucura pelos automóveis era uma marca status na zona, a que não escapavam os Toyota’s do Luis e do Julio, com a viatura do Luis a ser conhecida pela velocidade?!
Bem veloz? com toda a certeza poderia não ser! Mas que era sem duvida, e com toda a certeza, o carro com maior numero de viagens com destino á depravação, para petiscos e visitas a bares e prostíbulos, ai sim nenhum outro carro da zona lhe ganhava. Acredito mesmo que nos 365 dias do ano, ele deveria acabar por conseguir sair ai umas 470 vezes, tendo como destino na maioria das vezes alguns desses afamados locais.
Aquela poderosa equipa delirava com uma ida ao “Enche a Pança”, ao “Trevo” ou ao “Sorte do Azar”, e lá se reuniam obviamente no café da nossa rua, para partirem para mais uma noitada de farra. As tardes eram normalmente dedicadas a deslocações para petiscos, ou algo mais próximo, como alguma das conhecidas casas onde ‘Madames’ apresentavam algumas novidades de duas pernas, importadas de Lisboa ou arredores.
As portas do café encerradas na manhã seguinte, até mais tarde do que o normal, eram desde logo um sinônimo de que a noitada tinha sido longa, e produtiva em termos de animação, etílica e também erótica.
Mas era também no café que surgiam ilustres personagem, a nível local, como era exemplo uma das irmãs do Bragança, conhecida pelas suas atividades lúdicas em termos de sexo remunerado, sempre acompanhada pelo seu fiel amigo o conhecido fadista “Tony Xavier”, que diziam era gay assumido, e que lá jeitinho para isso não lhe faltava, pois era muito visível para qual mortal minimamente observador, graças ao reluzir do seu rosto pejado de pomadas e cremes, para além de outras aplicações mais próprias de uma senhora, e dos seus dedos cravejados de anéis de todo o gênero e feitio, para além de um imenso fio a reluzir em redor do seu pescoço sempre ornamentado com um lenço, á boa maneira dos ‘marialvas’.
A jovem passava por ali de vez em quando para fazer alguns serviços extra, pois o seu local fixo de trabalho era na Baixa da Banheira. No entanto sempre aparecia algum cliente tresmalhado, para fazer uma visita á parte das traseiras da ex-fabrica do sal, e segundo constava era tão trabalhadeira que chegava a conseguir assegurar uns 6 ou 7 clientes de seguida, num constante corrupio de idas e vindas, do estilo vai agora tu que ela já te está á espera, que eu já fui...
Claro que não era a única artista deste tipo de espetáculo a por ali surgir. Mas a grande atração era mesmo sem duvida a conhecida Anabela, com o seu muito famoso casacão de peles cheio de sebo, e que tinha como seu cliente preferido e numero um o Carlos “Marmitas”. A que claro outros se seguiam, e como não podia deixar de ser, o apartamento improvisado escolhido era sempre as traseiras da ex-fabrica do sal. Ela vinha sempre acompanhada por uma ou duas amigas que se dedicavam á mesma atividade, cujas receitas serviam para custear roupas, bebidas e claro uns produtos muitos utilizados por esse tipo de pessoal, nessa época, e que animavam um pouco, segundo diziam faziam rir e esquecer a vida.
Uma delas curiosamente é hoje uma muito digna e competente professora particular, casada com todos os sacramentos da santa madre igreja, com um cavalheiro, muito ilustre e conhecido localmente,
No entanto a Anabela conseguiu também fazer escola, e quando um dia tivemos conhecimento de que vivia um estonteante romance do tipo “jet set” com o Chalana, conhecido futebolista do Benfica, todo o mundo ficou incrédulo, depois começou a desfilar de carro aberto com a cabeleira ao vento, Avenida J. J. Fernandes acima, Avenida abaixo, e ainda mais incrédulos ficaram todos quando algum tempo mais tarde o Chalana foi transferido para jogar no Bordeux em França, e levou aquela dama para fazer as vezes de sua esposa, ainda para mais quando começou a surgir a sua foto nas revistas da sociedade??? da época, o chamado “Jet Set”, fazendo-se passar por pudica jovem da sociedade barreirense, a viver um primeiro grande amor da sua vida?...
Claro que ela tinha razão, aquele era o primeiro... de muitos grandes amores ($$$)...
Era, foi na época a risota geral, sobretudo dos antigos supostos clientes, e todo o mundo comentava perante as suas fotos, tiradas junto de uma piscina em Bordeux, França de que:
“... de ‘puta’ a madame vão só dois passos, e a piscina... serve para tudo isso e muito mais!”
Aquele café da nossa rua era mesmo um mundo, desde jogadores quase profissionais, prostitutas, futebolistas, gay’s, lésbicas, empresários, etc... tudo ali passava, era a sociedade real em movimento, passando á nossa porta, ao contato dos nossos adolescentes olhos.
Quando falo de jogadores quase profissionais não ando muito longe da verdade, pois muitas vezes por ali se jogaram paradas bem altas, tanto á sueca e ramy como á lerpa, e mesmo ao dominó.
Algumas figuras, para sempre ficam marcadas na historia do local como o “Frutol”. Talvez o maior jogador de sueca que algum dia eu vou conseguir ver jogar, e que tinha ainda a particularidade de numa tarde normal de jogo conseguir encher duas mesas de apoio, com garrafas de cerveja Carlsberg, por si bebidas, mantendo sempre a sua lucidez e grande capacidade técnica de jogo.
O Luis era outro jogador temível, e os duelos entre ambos eram quase sempre com apostas por fora, com paradas altas tanto a dinheiro como a garrafas de bebidas caras.
Depois apareciam figuras como o Mario Resende, o Julio, o “Facadas”, o Carlos Santos, o Carlos “Marmitas” e mesmo um Luis Costa, que em tarde inspirada podiam desequilibrar uma mesa.
Para se ter alguma animação extra, era só necessário compor uma mesa com o Silva “Alfaiate”. Após alguns copos de tinto ou branco com mistura, começava a não distinguir muito bem os naipes das cartas, e por esse motivo a fazer “renuncias” o que causava grande agitação, e não raras vezes conduzia a saídas diretas pelas montras do café. Ele acabava por tornar-se algo impertinente nas discussões que se criavam, e obviamente os parceiros de mesa acabavam perdendo também a paciência e a própria compostura.
Quando se chegava ao café, e se encontrava uma montra partida, invariavelmente era sinal de que o Silva “Alfaiate” tinha sido expulso em vôo direto, de uma das mesas de jogo, e mais parecia o modo de colocar ordem nos jogadores no velho Oeste Americano.
Os jogos de azar a dinheiro são proibidos por lei, no entanto, muitas vezes as apostas de verbas monetárias relativamente altas, ou garrafas de bebidas caras eram feitas sem aparentar tal aposta, mas claro que a assistência em redor da mesa acabava por denunciar indiretamente a armação.
Os jogos realizavam-se com apostas monetárias que eram religiosamente depositadas previamente, nas mãos, do dono do café, que somente entregava os valores no final do jogo aos respectivos vencedores. Os jogos eram muitas vezes controlados por marcas, como simples caramelos, grãos ou feijões, e que me recorde somente uma única vez existiu verdadeiramente problema com uma denuncia, motivada pela hora tardia a que decorria o jogo, e que acabou muito para além do horário legal de encerramento do café.
A nossa vida era tão normal naquela época, que qualquer um poderia deslocar-se ao café em tronco nu, vestindo uns simples calções, embora acontecimentos externos pudessem levar a que isso não fosse muito agradável, como aconteceu um dia ao Jorge da “Amélia” que entrou num final de tarde de verão, nesses trajes no café tão somente para comprar um maço de tabaco e de um momento para o outro se viu envolvido no meio de uma rusga.
O resultado final, em virtude de não ser possuidor de identificação pessoal no local, foi uma ida até aos calabouços da policia, para ser identificado.
Esta situação perfeitamente ridícula, de um cidadão a ser detido em calções e chinelos, quando se deslocava para comprar um simples maço de tabaco, só era possível no Portugal dos anos 70.
De nada adiantava tentar justificar a presença do Jorge naquele estado, numa hora ainda relativamente normal no café, pois a policia fazia muito gosto em se fazer passar por tonta, só para mostrar um pouco de serviço, uma vez que os verdadeiros delinqüentes mantinham-se á solta pelas ruas e por outros bares bem conhecidos por esse tipo de clientela. Era a época do inicio da atuação do bando terrorista das FP-25 de Abril, que assassinavam inocentes e assaltavam bancos em nome da revolução do proletariado, e a que ninguém colocava travão.
Anos mais tarde, depois de detidos e julgados, acabaram por sair todos em liberdade, e até o “Bandido Chefe” Otelo Saraiva de Carvalho, ainda foi agraciado com uma comenda, como grande herói nacional, outros por ai andam á solta, ocupando alguns destacados cargos na estrutura da administração do estado. Um dos exemplos mais conhecido a novel local, no Barreiro, é o ex-Vereador Amílcar Romano, também conhecido por “Bombas” que agora até quer ser Presidente do Partido Socialista do Barreiro, tudo isto para nos provar que por vezes em Portugal o crime compensa!...
Mas como sempre acontecia, nessa época em que as palavras amizade e solidariedade tinham para todos nós uma importância total, um grupo de amigos, lá nos deslocamos a resgatar o amigo, portando os seus documentos e uma blusa, para o tornar mais sociável no regresso a casa. Aproveitamos ainda a viagem para resgatar também outros amigos, que por falta de documentos tinha ido de igual forma dar um passeio na “Ramona”. Na verdade nessa noite lembro que os premiados com o passeio, para além do Jorge foram o “Fome”, o “Carlitos” e o Humberto.
Mas o local era também sinônimo de analise criteriosa da sociedade e vivencias políticas do momento, e no final dos anos 70 com os restos da revolução, a industria metalomecanica pesada em especial, viveu uma aventura mais de melhoria exponencial e fictícia da qualidade de vida dos trabalhadores do que realmente do aumento real do serviço e dos respectivos rendimentos.
O café da nossa rua ficava nesta época diariamente cheio de trabalhadores da Lisnave, Setenave e Siderurgia Nacional, que levavam dias e dias a jogar ás cartas e consumindo bebidas atrás de bebidas, dentro dos seus horários normais de trabalho, sem conta ou nexo.
Era o período fabuloso do “Gonçalvismo”, com a agravante de que estes alegados trabalhadores democratas, gozavam diretamente e publicamente com outros trabalhadores, sobre o quanto ganhavam, só para não trabalharem, e dormirem nos porões dos navios, ou passarem os dias bebendo e jogando com o Estado a pagar.
Para nós jovens, algo não podia estar de forma alguma a bater certo, pois era lá possível e normal estarem a pagar ordenados, ainda por cima aumentados muito para além do razoável, a indivíduos que não trabalhavam.
Pagar a trabalhadores?! para ficarem em casa, ninguém acreditava que fosse razoável e ainda mais quando os nossos olhos viam que ficavam em casa para jogar as cartas ou dormir, ou ficavam no serviço para dormirem nos porões dos barcos como sem vergonha nenhuma falavam aos sete ventos, algum dia a bomba iria explodir..
Costuma dizer-se que barriga que lá o tem, lá o governa, e neste caso gozavam ostensivamente, e mesmo colocados perante a iminência futura do fim do sonho impossível que estavam a viver, eles brincavam e eternizavam a situação e não acreditavam numa alteração.
Então um dia o fim do sonho como seria de esperar chegou, e o que antes era ostentação virou pesadelo e desespero.
Quando antes levavam o dia a jogar e consumir sem limite, agora no desemprego olhavam para os outros, sem terem dinheiro no bolso para comprar um simples cigarro ou beber sequer uma cerveja míni, e com a fome á bater á porta das suas casas.
Era a grande crise que chegava ao Distrito de Setúbal, com a frustração pessoal enorme, e com essa situação se dava inicio as crises matrimoniais, com alguma violência domestica á mistura e que nos eram dadas observar, tudo isso aliado ao alcoolismo com a adição ao vinho misturado com refrigerante por ser mais barato e permitir assim a manutenção de algum consumo.
Como se isso não fosse suficiente; homens como o Delfim, padeciam de crises de ansiedade, derivadas da sua estada na guerra colonial, e a família é que pagava por tabela essa situação.
A crise claro que também acabou por chegar aos lucros do café, e novos tempos se aproximavam em termos de gestão, passando a ser sub-alugado.
De entre todos os locatários a situação mais hilariante passou pelo sub-aluguer ás chamadas “Mijonas”, figuras típicas da Rua Grão Vasco, família numerosa com varias raparigas, a que não faltava a exposição matinal diária dos colchões a secar ao sol, devido á incontinência urinaria noturna, e daí o nome “Mijonas”.
A mãe, mulher de luta pela vida, que segundo constavam as vozes da má língua, se dedicava a compor o orçamento com alguns favores fora do casamento, resolveu apostar no aluguer do café em uma determinada época.
Como todo o megalômano, resolveu tentar transformar o café num local diferente, mudando do oito para o oitenta, colocando cortinas nas montras, toalhas nas mesas, com jarras com plantas dentro, colocadas em cima das mesas, proibiu os jogos de cartas, e queria transformar o nosso café numa típica pastelaria/café de bairro, a boa moda de Lisboa. Só que o Lavradio não era Lisboa, nem o nosso café seria naquela época aquilo que ela idealizava, e muito menos o momento econômico se propiciava a esses luxos.
O resultado destas mudanças não se fez esperar e foram mais de duas semanas quase sem clientes, pois toda a freguesia fugiu para o café mais próximo o “Cabeça de Boi”. Assim sem clientes e com a casa as moscas, pois nós nem á porta passávamos para beber um simples café, acabou por voltar a anunciar que deixava jogar as cartas e outros jogos, e a pouco e pouco voltou á forma anterior, permitindo o normal convívio.
Os clientes antigos a pouco e pouco foram regressando, mas nada como dantes em termos de consumo, pois a sua forma de atendimento mais parecia, querer bater no cliente para este consumir, a sua idéia era que o cliente deveria estar sempre a consumir, desde que sentado numa mesa, ou mesmo em pé junto do balcão.
Foi então que se resolveu, como que dar um golpe de asa para; recuperar o nosso café, e acabar com aquele contra senso ao que entendíamos por natural nos nossos hábitos.
Sem necessidade de qualquer combinação entre todos os freqüentadores, começaram a surgir as trapalhadas nas contas ao verificar-se que o tipo de controle não controlava nada. Bebia-se 10 e pagava-se 7 ou 8, bastava começar a ir pondo umas garrafas vazias em cima do balcão, e como se isso não fosse suficiente; a “Mijona mãe” começou a ter que se ausentar para tentar compor o orçamento, deixando o café muitas vezes entregue ao nosso grande amigo César, que conjuntamente com os filhos e o “tonto” do marido da “Mijona mãe”, dominava a situação, chegando a fazer autênticos sorteios de brindes, desde chocolates a bebidas por arremate. O resultado final não se fez esperar por muito tempo, e passados três ou quatro meses voltamos a ter o nosso espaço livre com anteriormente, com o regresso das “Mijonas” ao seu paraíso da urina, e o retorno do Carlos “Marmitas”.
Tudo voltava assim a ser como sempre fora, e o nosso café da Rua Grão Vasco, tornava a ser como que a nossa segunda casa.
Para muitos era quase mesmo isso, uma segunda casa, onde podiam passar bem mais tempo do que na própria residência. No entanto para outros como nós, era mesmo uma tradição, um ponto de encontro, um extensão publica das nossas residências.
Era, e será na nossa memória, para sempre; o Café da Nossa Rua!

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