quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

XXIV - FINAL DOS ANOS 70 E A SUA IMPORTANCIA NOS ANOS 80

A evolução humana ao longo dos séculos concedeu ao homem a inteligência necessária, para lhe deixar o caminho aberto para a escolha praticamente livre do seu próprio caminho individual sendo que a existência de pensamento, e apesar de conhecer os seus íntimos detalhes, em momento algum impera a interferência no curso de cada pensar externo.
No entanto; no nosso intimo, guardamos relatos e fatos, para levar a efeito uma analise criteriosa, quando o julgamento final, que muitos de nós levamos a cabo, no fim de cada dia, semana ou mesmo mês, e muito em especial no final de cada ano, mas mais racionalmente e conclusivamente no final de cada década da nossa vida.
Inexoravelmente, o homem tem que entender que mesmo com todo o seu poder e mesmo tentando ser sempre implacável, não é por si só inabalável no seu poder no seio de um grupo ou de uma relação.
Vem isto muito a propósito sobre a importância na formação pessoal de um individuo, de todos quantos o rodeiam, e muito em especial, tal como eu, naqueles anos 70, em que ainda me encontrava numa fase básica de aprofundamento da minha formação pessoal.
No entanto fiquem certos de que a aprendizagem e a formação não se esgotam na infância e juventude, essas balizas de aprendizagem da vida, em termos de caracterização pessoal, são constantes embora obviamente mais vincadas em termos de absorção nas primeiras décadas.
No final dos anos 70, e por quase todo o decorrer de grande parte dos anos 80, eu convivi com um grupo muito especial de amigos, alicerçado em varias gerações de valorosos personagens que com todos os seus defeitos e virtudes conseguiram influenciar de modo determinante o ser que hoje sou.
Eu de forma bem estruturada, soube beber dessas personagens o que de melhor elas continham, para dessa maneira assumidamente epistemológica enfrentar hoje os desafios de um modo por um lado presepeiro e aventureiro tipo D. Quixote. Mas por outro de um modo bem firme e determinado, cimentado na visão que essa gente tinha de nunca virar a cara á luta e enfrentar tudo e todos.
Foi assim como juntar a fome com a vontade de comer, pois se por um lado as minhas raízes familiares já tinham moldado em mim esse estado de sentir e estar, estas amizades concluíram o muito pouco que poderia ainda faltava moldar na minha personalidade, nesse aspeto.
Foram anos e anos de fatos, e mais fatos, que sem duvida relatar; os mais duros seria tirar o brilhantismo á larga, muito larga, maioria de tantas e tantas e tão boas passagens, muitas delas, mesmo hilariantes, e bem humoradas, que fizeram desses anos como que uma aventura diária de descobrimentos constantes das maravilhas do saber viver.
Eu consegui nesses anos, algo extraordinário que se pode considerar raro, ou seja, vivenciar como que duas vidas independentes dentro de uma só.
Enquanto não perdia o contato com os meus amigos, a minha gente do local de residência, os amigos da Rua Grão Vasco, saltei para outro lado do mundo, para a realidade de outras cidades, nomeadamente o Barreiro, Setúbal e Lisboa, conquistando novos amigos, vivendo outra vida no local de trabalho, nos locais de estudo, na descoberta das verdadeiras paixões e inclusivamente no meio da década de 80 o grande salto para o Mundo global, a descoberta da Europa, que ficava logo ali, mas que no Portugal dos anos 80, parecia que ficava a milhares de léguas de distancia.
Nunca esqueço como referencia um filme de Lelouch “Aventura é Aventura” porque realmente eu vivi uma década de grandes aventuras, não no aspecto musical, como o filme bem retrata, mas de amigos que ainda hoje pertencem, felizmente, ao meu universo, como outros que pela lei natural do tempo partiram, mas ficam na nossa memória imortalizados pela sua importância. Quantas e quantas vezes ficam eternizados por simples fotos mentais que, no momento, pouca ou nenhuma importância, se nos parecia terem, mas que constituíram momentos inolvidáveis para não mais esquecer.
Mas também fui capaz de viver aventuras totalmente só, por esse mundo fora, aventuras que muitos dos amigos não viveram por falta de arrojo, ou simplesmente porque as suas vidas eram uma só, e a minha vida; e conseguia que fossem muitas vidas dentro de uma só.
Reconheço hoje que viver para mim sempre foi tudo!
Viver o mais possível, o melhor possível, da forma mais razoável e segura possível. Sou um amante da vida, e quando ela terminar, posso não ter pena de mais nada, se não do muito que ainda gostaria de ter vivido. Mas fazer o que? A vida é isso! É isto que eu descobri muito cedo e que deve ser vivida na sua máxima expressão. Com prazer, e sobre tudo tentando dar prazer também aos outros com a nossa companhia.
O Lavradio era assim naquela época como que o meu, o nosso castelo, era dali que tudo tinha um começo e um fim.
E quando muitas aventuras externas começavam ou no café do Carlos “Marmitas”, ponto de encontro para mais uma partida, ou já na paragem do autocarro, carreira 7, no cimo da Avenida J. J. Fernandes, ali junto da banca dos jornais da Mimi, nem eu nem por exemplo muitos amigos como o Joaquim Núncio (Quim-Zé), imaginávamos como tudo iria terminar.
Verdade se diga que de uma inocente ida ao futebol no Estádio José de Alvalade, em Lisboa, a sorte do destino nos poderia levar tanto a uma Feira Popular como a uma noite de ‘ramboiada’ pela cidade grande, com regresso no dia seguinte. Mas também por certo por influencia desse mesmo destino, ou simplesmente sorte, sempre tudo nos acabou por sair bem, com o regresso a casa, sãos e salvos, embora muitas das aventuras por certo pudessem ter em algumas ocasiões outros desfechos menos previsíveis.
A aventura da vida é uma viagem maravilhosa por locais e fatos, que muitas vezes estão tão próximos de nós e tão óbvios que de tão familiares se tornam sem importância no preciso momento em que ocorrem.
As longas noites de primavera e verão serviam muitas vezes para levar a efeito, animadas e longas excursões pedestres, pelas estradas e veredas das quintas de Santo Antonio da Charneca, tendo como objetivo uma boa dose de conversa acompanhada pela recolha de fruta de algumas boas quintas existentes na época, naquela zona rural do Concelho do Barreiro.
Nesses gloriosos tempos tudo era campo, da via rápida ainda nem sinais e as grandes Urbanizações nem no papel ainda se imaginavam. A Cidade Sol era uma miragem e a Vila Chã um conjunto desordenado de alguns, poucos, prédios, e muitas vivendas, Santo Antonio da Charneca começava logo ali no campo de futebol, escola e igreja que anos mais tarde viria a ter alguma importância na minha vida. Santo António da Charneca, naquela época era uma simples localidade provinciana que aparentemente pouco tinha que ver com a industrial e cosmopolita cidade do Barreiro.
A historia do local cruzava-se com a histórica lenda do cinema projetado num dos clubes recreativos, a que o surgimento do leão da Metro Golden Mayer, obrigou o povo a correr a casa, em busca de sachos, foices e forquilhas, e todo o material móvel de lavoura, para dar inicio á caçada ao tão famoso Leão de Santo Antonio, que tinha saído da tela e andava á solta pelas ruas, valados e quintas da região...
Ir a Santo Antonio da Charneca, e não brincar com algum natural da terra, perguntando pelo leão, nem era uma visita completa. Claro que a reação era sempre furibunda, pois eles tinham a consciência de que tinham sido ludibriados e se tornaram alvo da chacota dos citadinos. Sempre que se tinha conhecimento de que o individuo era morador ou oriundo de Santo António, logo era tratado como mais um da terra do leão.
Todos nós, e os amigos astutos de outras gerações mais velhas, resolvíamos subir a Santo Antonio, em bando animado, apanhando o autocarro, carreira 6, para poupar tempo e claro os pés para a aventura da caminhada do regresso.
Lá acabávamos por descer no largo do coreto da terra do “Leão”, beber uma cerveja ou outro digestivo nalguma das conhecidas tabernas locais, e depois; daí em diante era andar sempre a pé no meio do breu da noite, com destino certo para uma ronda via estrada da Adega dos ‘Fortunatos’, com destino á Fonte do Feto, Penalva, Covas de Coina e descida até Coina.
O regresso era normalmente feito pela estrada que passava junto do Quartel dos Fuzileiros, em Vale do Zebro, com a Mata Nacional da Machada a dar a calmaria necessária graças á imensa verdura. Depois uma passagem por Palhais, ou então o caminho a corta mato, pela estrada velha que subia para voltar a encontrar a Vila Chã. Dali até a casa era só fazer a caminhada pela imensa reta e descer junto da quinta do Zé das Vacas até á Fonte das Ratas e complexo desportivo da Cuf, agora rebatizada como Quimigal, e atravessando o velho túnel sob a via férrea, ali junto da Escola Álvaro Velho, estávamos novamente no Lavradio, a nossa casa, o nosso pequeno Mundo.
Nestas excursões, para além da conversa de circunstancia, entre rapazes e homens, que sempre girava em torno de: temas tão importantes para a época como; anedotas, mulheres e futebol, o importante era ir consumindo umas frutas apanhadas ao acaso, um pouco aqui e ali.
Tudo o que era Quinta com apetecíveis frutos, era alvo da nossa “simpática” e animada visita, para assim se degustar diretamente da arvore umas boas; laranjas, maças, peras ou umas deliciosas uvas tipo moscatel, doces como só ali se podiam encontrar.
A companhia; normalmente agradável, e animada, composta por gerações dispares como o Saul, sempre um perigo na hora de fugir atendendo á sua compleição física, que mais parecia uma bola humana, mas com verdadeiros especialistas como o “Lê”, o “Stick”, Julio, Idalecio, Pimenta, Costa, “Cão de Luxo”, Mario Núncio, Joaquim Núncio, Manuel “Cambuta”, Mário Resende, Jorge da Amélia, Jose Antonio e o Victor “Vitinha” que apenas nos acompanhou uma vez pois, ao tentar telefonar para casa, e uma vez que o telefone não funcionava, deu um murro na caixa deposito do telefone publico, que estava cheia de moedas de 0$50 e 1$00, e se abriu para o chão, com terrível estardalhaço, ali bem no meio da reta da Vila Chã, e foi uma festa de tanta moeda que rolavam pelo chão. Claro que alguns membros do grupo, sobretudo os mais velhos, ficaram a pensar ter sido mesmo um arrombamento, e como que passaram a vetar a sua presença nas deslocações, pois segundo alguns; quem arromba uma caixa do telefone publico um dia destes ainda assalta uma residência, e ai como estamos com ele, sujeitamo-nos a ser tomados por coniventes.
Mas faltavam tantos outros companheiros, que muitas vezes ajudavam a compor um grupo bem mais numeroso, que chegava a bem mais de uma dezena e meia de aventureiros.
A caminhada era longa, eram; umas boas passadas de mais de duas dezenas de quilômetros, e quantas vezes acompanhadas de algumas correrias, á frente de alguns caseiros ou proprietários mais atentos, e que não achavam muita graça aos nossos passeios de grupo especialista na apanha da fruta alheia de modo ambulante.
Das muitas romarias, quase sempre efetuadas em agradáveis noites de luar, obviamente que ficavam sempre algumas interessantes historias, a maioria delas hilariante, como por exemplo; os exageros do “Lê”, que se chegava a munir de um saco de ‘serrapilheira’, para poder assim recolher laranjas e outros frutos, em boa quantidade, para degustar mais tarde, ou para levar para sua casa, onde os numerosos filhos não davam descanso, na arte de comer. Ou as muitas vezes em que alguém ficava preso no cimo de uma árvore, com algum cão mais furioso por baixo de guarda, ou ainda as quedas de cima dos muros, após fuga á frente dos defensores das propriedades.
A melhor recordação que me fica do “Lê”, participando nessas aventuras, é a de um pai natal, sem barbas brancas, mas com um saco enorme as costas.
O hilariante destas aventuras era mesmo, para além do saudável convívio, os momentos de fuga, com a natural adrenalina de sentir alguém aos gritos e ameaças, perante a fuga e risada constante do grupo.
Era espantoso ver homens de mais de quarenta anos, que se conseguiam transformar em autênticos adolescentes felizes, como se vivessem uma segunda juventude, nem trambolhões ou correrias os demoviam de durante um Verão se proceder sempre a 2 ou 3 daquelas romarias noturnas, acompanhadas pela gritaria dos fazendeiros que; perante aquele animado grupo gritavam a plenos pulmões para o grupo da noite: Malandros!!! Ladrões de fruta!!! Vadios!!! Eu vos apanho bandidos...
Para todos nós, jamais naquela época nos poderíamos auto considerar ladrões de fruta, pois que o nosso intimo sentia que umas 30 ou 40 peças de fruta, recolhidas de forma seletiva, espalhadas por um bom grupo de quintas, não era mais do que uma brincadeira, sem maldade.
Hoje, pensando bem, imagino que não era bem assim, e se para além do nosso flutuante e sazonal grupo surgissem mais intrusos, o que realmente seria das diversas quintas com essas invasões.
Isto para não falar claro das muitas vezes em que o “Lê” conseguia encher o saco das frutas mais variadas...
Mas também não se pode olhar com os olhos de hoje, para este grupo, como um simples conjunto de malfeitores noturnos, muitos deles pais de família, que já tinham idade para ter juízo. No entanto temos que ficar no meio termo, isso sim é verdade, pois a situação embora descomprometida, em termos aparentemente criminais, não era obviamente muito agradável para os visitados.
Mas este mesmo animado grupo, alargado ainda a outros elementos, nem só de “vadiagem” noturna se ocupava, sobretudo no período estival.
A praia da Barra-a-Barra era outro dos nossos locais de eleição, e em dia de disponibilidade e maré baixa, podíamos ser encontrados no extenso areal, em deliciosas partidas de futebol, do tipo seleção de solteiros contra casados. Jogos acaloradamente disputados, com muita “sarrafada” nas canelas pelo meio, e uns valentes mergulhos no rio, quando o calor e o cansaço, apertavam um pouco mais.
Nessa época ninguém se lembrava da poluição ambiental do rio, e a verdade é que embora a água fosse constantemente corrente, o seu sabor não era o mais agradável, e quem sabe hoje os níveis de contaminação de que ela era portadora nesses saudosos tempos, no entanto quem questionava isso. Era uma inconsciência a que todos nos juntávamos de certa forma, nem imaginando os riscos para a saúde que se poderia estar a correr.
No entanto nunca nenhum de nós teve qualquer problema de pele ou outro por ali ter tomado banho, fosse por pura imunidade ou mera sorte de apanhar sempre o rio na vazante e as fabricas se encontrarem instaladas a jusante, e dessa forma, a água mais contaminada se encontrar fora do local.
A corrente do rio era constante e muito forte tanto na vazante como na enchente, e o grande atrativo e desafio de uma travessia da “caleira” até á Ilha do Rato, com um longo promontório de cascas de ostra, era muitas vezes o culminar da ‘jogatana’ futebolística.
Claro que existiam dias melhores do que outros, em termos de constituição do grupo, mas a presença de algumas personagens era desde logo garantia certa de muita qualidade desportiva em termos futebolísticos. Se o grupo era composto por Julio, Idalecio, irmãos Núncio, Pedro “Super”, José Antonio, Alfredo, Victor, Mario Resende, Jorge da “Amélia”. Para a risota o saudoso gordo Saul, “Lê”, Manuel “Cambuta”, ou mesmo o Chico “Aroles”, que não dispensavam umas boas caneladas para substituir a falta de qualificação e habilidade desportiva, então sim, seria um dia em grande com futebol de qualidade e ao mesmo tempo umas boas gargalhadas.
Numa dessas jornadas desportivas, a habilidade de um dos craques fez com que a bola fosse parar fora de borda, no meio da forte corrente, e ai todo o mundo em solidariedade saltou água na esperança de a, poder recuperar, o mais rápido possível, antes que se afasta-se demasiado, no entanto o esférico andava mais rápido sobre a água, no meio da correnteza, do que as nossas braçadas podiam alcançar, e quanto mais se nadava, mais a bola fugia levada pela forte corrente.
Uma a um, foram desistindo, salvo o ultimo “moicano” o Julio, que como nadador exímio, não abandonou a perseguição, no entanto quando finalmente recolheu a bola, estava já a mais de meio caminho entre o Lavradio, praia da Barra-a-Barra e o lado de lá, com o aeroporto do Montijo ali a duas simples braçadas. A Base Aérea seria o seu destino, pois o regresso a nado, perante a forte correnteza que se fazia sentir, era humanamente impossível. Assim, e perante o espanto geral, ele, de forma inteligente, e como não estivessem barcos na zona, acabou por se deixar ir até á outra margem, ao longe já não era mais do que um ponto no meio da imensidão da água.
Todo o grupo, com total certeza de que nada de grave já lhe poderia acontecer, regressou ao café. Ao nosso ponto de encontro, ali bem junto das antigas fabricas do sal do Camarão, atual filial da Fiat no Lavradio, café batizado de Sol Mar, embora tivesse Sol o Mar não existia, só o rio ao fundo da quinta, e para nós será sempre o café do Luis, do Carlos ou mesmo o das “Mijonas”.
A certeza de que o Julio estava ok, nos dava outro animo, mas por outro lado estávamos certos de que iria acabar por ter problemas para conseguir regressar ao Lavradio, e cogitamos várias idéias para o poder ir resgatar ao Montijo. Imagine-se um tipo em terra estranha, vestindo uns simples calções de banho, descalço e com uma bola e futebol debaixo do braço. A muitos quilômetros de distancia da sua casa, sem documentos, dinheiro ou roupa para poder vestir mínima e condignamente, para poder regressar por via terrestre, no mínimo poderia ser tido por um simples louco, que se lembrara de tamanha aventura.
No entanto, e apesar da preocupação generalizada, era também opinião unânime de que; estávamos certos de que ele iria resolver da melhor forma a estranha situação. Não adiantava estar a partir a caminho do Montijo, pois quem saberia dizer onde o encontrar, quem sabia qual a sua idéia para solucionar o problema.
Passadas umas 4 ou 5 horas surgiu um Julio sorridente, com a bola debaixo do braço, relatando as suas aventuras de louco futebolista náutico, em terras do Montijo “Aldeia Galega”. As aventuras vividas no decorrer da travessia marítima, bem como a sua chegada ao Montijo, e como, munido apenas de alguma argumentação, uma bola de futebol, e uns simples calções, a tapar as partes mais intimas, tinha conseguido regressar, com muita sabedoria, e claro por certo com muita risota e incredulidade e deixaram viajar naquele estado no autocarro de carreira, com a promessa da ratificação do pagamento do bilhete posteriormente, nos escritórios da transportadora no Barreiro, atendendo á circunstancia muito, mas mesmo muito estranha e especial.
Aquela praia da Barra-a-Barra, era realmente muito atreita a situações provocadas pelas fortes correntes marítimas, e inclusivamente registrou ao longo dos anos alguns acidentes fatais, devido a esse fator natural.
Eu próprio, que em toda a minha vida apenas sofri dois valentes sustos dentro de água. Acabei por viver um deles, naquele mesmo local, num normal e tranqüilo dia de brincadeiras com amigos. Resolvemos jogar á bola dentro de água, e num pontapé ou lançamento braçal mais forte, a bola foi parar a meio da correnteza, tendo desde logo o Pedro “Super” saído em sua perseguição, e ao entrar na “caleira”, no meio da corrente não mais conseguiu retornar.
Eu sentindo a sua grande aflição e falta de calma, avancei água fora em seu socorro, e seguindo as mais básicas leis da sobrevivência, com calma dentro de água, e ensinamentos recolhidos ao longo de intermináveis jornadas aquáticas, nadei até junto dele, mas não demasiado próximo que me pudesse deixar agarrar por ele. Consegui acalmá-lo e sabendo de antemão que ele sabia nadar um pouco, incentivei-o para que fosse nadando transversalmente para conseguir sair da corrente da “caleira”, o que após longo esforço foi conseguido.
Como qualquer naufrago desesperado, ele queria a minha presença junto dele, o que teria levado os dois irremediavelmente para o fundo. Muitas pessoas embora saibam nadar perfeitamente, acabam por morrer afogadas, pelo simples fato de que perdem a calma num momento de desespero, como o é sem divida, o estar no meio de uma forte corrente. Com um pouco de calma, mesmo que somente se saiba boiar, e mantendo um pouco de presença de espírito, basta deixar-se levar pela corrente e nunca lutar contra esta. Dessa forma simples, essa corrente levar-nos-á a algum local, não importa muito onde, o importante é não entrar em pânico, nem muito menos perder a calma, e fazer a necessária respiração coordenada para não beber água desnecessária.
Na verdade ele acabou saindo da situação gritante, e eu fosse por uma questão nervosa perante a situação, ou outra qualquer, acabei por ficar no seu lugar no meio da correnteza, e com uma imensa câimbra numa perna.
Nesse momento e dia, eu perante a dor intensa na perna, conjugada com a imensa corrente imaginei que o pior me poderia acontecer, e quanto mais tentava nadar para fugir á corrente, e ao mesmo tempo boiar, para me tentar situar, mais longe via a margem e as pessoas amontoadas olhando sem parar, mas nada fazendo em meu auxilio.
Recordo claramente ter conseguido ver o Pedro chegar á margem, e o alivio pessoal que senti, ao ver espaçadamente o seu pontinho já minúsculo deitado na toalha com todo o mundo em seu redor. Todo o mundo me parecia bonequinho minúsculo, e eu envolvido de água por todo o lado, tentando debater-me para conseguir sair dali, de dentro da correnteza do canal.
Quando finalmente consegui, já estava longe, muito longe da margem, e ainda por cima já do lado das fabricas, mas felizmente sem praticamente correnteza nenhuma, e com a câimbra a deixar-me um pouco mais tranqüilo. Não tenho a noção de quanto tempo nadei e boiei para conseguir sair daquela situação, pois para mim pareceram horas sem fim, mas claro que devem de ter sido somente longos minutos. Recordo, no entanto que, após muito tempo senti alguém junto de mim, com água abaixo da cintura, que me perguntava se queria ajuda.
Foi das situações, mais caricatas e ridículas que passei na minha vida. Estivera a dois passos de morrer afogado, com uma praia cheia de gente a olhar para a minha luta no meio do canal, e ninguém se movimentou para fazer nada. Agora com água pela cintura, aparecia aquele herói valentão?! a oferecer ajuda. Recordo que mesmo com poucas forças lhe consegui chamar de tudo menos pai, e acabei chegando á margem nadando tipo “gatinhado” de uma criança, arrastei-me para a minha toalha, junto de onde ainda estava deitado na sua, o Pedro tremendo ainda de frio, embora o dia fosse um escaldante 20 de Agosto, e só pensei:
“Consegui!”
“Conseguimos!”
Recordo sempre que encontro o Pedro “Super” esse dia memorável, e as palavras simples dele para mim, após ter conseguido chegar á minha toalha. Palavras simples, mas que me calaram bem fundo:
“Massas se não morremos afogados hoje, nunca mais morremos afogados nas nossas vidas!”
Passei algumas boas aventuras com o Pedro “Super” na minha juventude, mas nenhum se pode igual com tal grau de perigo de vida como essa. Em minha casa, e acho que também na casa dele ninguém soube nesse dia o perigo de vida que tínhamos corrido. Os amigos presentes ficaram proibidos de comentar o acontecido, muito embora algum tempo mais tarde tenhamos sido confrontados com a situação pelos nossos pais.
Ao longo da vida, talvez uma meia dúzia de vezes tenhamos recordado aquele dia 20 de Agosto, um dia memorável pela positiva e pela negativa, mas um dia em que ambos crescemos sem duvida um pouco mais, muito mais, enquanto jovens.
Curioso que o dia 20 de Agosto tem ao longo da minha vida, marcado consecutivamente, datas menos felizes.
Hoje, olhando para trás no tempo, revivendo esse dia e todos os riscos corridos, poderia pensar-se que eu não repetiria a mesma atitude, perante circunstancias iguais, ou mesmo idênticas. Na verdade não existe engano maior nesse pensamento, eu voltaria a fazer tudo de novo, e apesar de a amizade ser um fator determinante nestes momentos, acho que em termos de consciência num momento como esse, ninguém mede o tamanho da amizade e eu pessoalmente em situações análogas não paro para pensar duas vezes.
É neste tipo de situações que realmente largo numero de vezes o coração não escuta a razão, e determina a capacidade de entrega e solidariedade de um amigo, de um verdadeiro amigo!
Os anos 70 foram realmente os anos de sementeira de boas e grandes amizades, a que os anos 80 que se lhes seguiram, serviram para a grande colheita dos frutos dessa imensa plantação...

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